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Os dois idiomas da revolução religiosa

Nova York, Estados Unidos, 13/6/2011 – Em nosso mundo globalizado e pluralista, as comunidades religiosas devem poder falar a mesma língua de seus fieis, mas também a do público em geral. Tep Vong, patriarca supremo da comunidade budista do Camboja, viajou à cidade de Jaffna, no Sri Lanka, em meio à guerra civil (1983-2009) e, apesar do estado de sítio, uniu-se a outros – budistas, hindus, muçulmanos e cristãos – para colocar um fim pacífico ao violento conflito entre cingaleses e tamis.

A força de sua tranquila determinação budista foi inconfundível. Mas ele nunca citou uma só escritura budista. O que fez foi falar com a linguagem mais simples. Quem pensasse em falar claramente, com palavras comuns, era revolucionário? Para muitas comunidades religiosas, sim. A revolução é o cultivo de uma ação multirreligiosa baseada em significados religiosos ancestrais, com o uso de novas maneiras de se comunicar entre religiões.

Se alguém prestar atenção, encontrará evidências em todas as partes: zonas de guerra, lugares onde há extrema pobreza, escolas e bairros comuns. As forças de fanáticos religiosos dominam as manchetes dos jornais, mas a grande notícia é que as comunidades religiosas cooperam ativamente em um nível até há pouco inimaginável. Operando lado a lado na primeira linha dos desafios atuais, a cooperação multirreligiosa se tornou dominante e está aumentando.

O que acontece? Por acaso as comunidades religiosas decidiram se desfazer das identidades que as distinguem, abandonar as diferenças doutrinárias ignorar o transcendente para achatar-se até se converterem em simples organizações humanísticas? Provavelmente, não. Aferram-se às diferenças que as definem em relação ao transcendental, mas também estão trabalhando juntas.

Revolucionário é a exitosa combinação destes dois aspectos: as diferenças religiosas reais e a cooperação positiva, em um nível sem precedentes. Uma chave para entender a revolução subjacente é o fato de as comunidades religiosas de hoje serem cada vez mais “bilíngues”.

Uma dupla imagem ilustra o novo bilinguismo. Nos anos 1960, Martin Luther King (1929-1968), pregou em uma pequena igreja cristã sobre o flagelo do racismo. Usou o idioma da cristandade: suas escrituras, suas imagens, sua teologia, suas orações e outras tradições. Falou aos cristãos como cristão, utilizando sua própria linguagem religiosa.

Depois, King dirigiu-se ao Monumento a Abraham Lincoln em Washington, onde falou com convicção sobre o racismo para centenas de milhares de pessoas, algumas delas professando diferentes crenças religiosas ou, diretamente, nenhuma. Nessa ocasião, King continuou sendo o mesmo homem religioso. Não mudou enquanto caminhava da igreja até o monumento. No entanto, não podia simplesmente repetir o sermão pronunciado no templo.

Muitas das pessoas ali reunidas não compartilhavam o idioma de sua igreja. Portanto, King falou o idioma da praça pública. Nunca deixou de ser um crente, mas nas diferentes circunstâncias expressou seu ponto de vista, religiosamente arraigado, de duas maneiras diferentes. Foi bilíngue em matéria religiosa.

Muitas comunidades religiosas adquirem rapidamente esse mesmo bilinguismo. Mantêm seu próprio idioma religioso na hora do intercâmbio e da ação dentro de si mesmas, mas usam uma linguagem corrente com o mesmo fim no espaço público.

Mustafa Ceric, grande mufti da Bósnia-Herzegovina, conduziu sua comunidade islâmica para a reconciliação após o amargo trauma da guerra civil dos anos 1990. Para isso, primeiro trabalhou como muçulmano entre os muçulmanos, usando a riqueza da linguagem islâmica, incluindo suas escrituras e tradições.

E, junto com o cardeal católico apostólico romano Vinko Puljic; o bispo ortodoxo sérvio Nikolai, e o líder judeu Jacob Finci, também trabalhou em uma linguagem pública compartilhada para oferecer à exausta nação uma visão comum da unidade que chamou todos para a ação. Após a dor da guerra, o bilinguismo ajudou a aproveitar o poder de cada comunidade religiosa para cooperar na construção da nação.

Em nosso mundo globalizado, tanto o idioma religioso sectário como o público têm uma importância insubstituível para as comunidades religiosas. No mundo pluralista de hoje, nenhum dos dois pode colapsar no outro sem empobrecer a capacidade de uma comunidade religiosa de conhecer a si mesma e também fazer o máximo possível pelos demais.

Há uma revolução em marcha porque cada vez mais comunidades religiosas adquirem a destacável capacidade de passar da linguagem do templo para o da praça pública.

As duas formas são necessárias para que tenhamos comunidades religiosas diversas, compostas por membros informados e com uma sensibilidade moral duradoura, que possam encontrar um meio de colaborar com quem professa outra crença ou nenhuma, na hora de enfrentar os desafios mundiais de nosso tempo. Envolverde/IPS

* William F. Vendley é secretário-geral da Religions for Peace.

** Este artigo é parte da série “Religião, Política e Espaço Público”, que acontece em colaboração com a Aliança de Civilizações das Nações Unidas e seu projeto de Especialistas Mundiais (www.theglobalexperts.org). Os pontos de vista expressos nestes artigos são dos autores e não necessariamente refletem os da Aliança de Civilizações das Nações Unidas ou das instituições às quais estão filiados os autores.