A web é encarada pela juventude indígena como “janela para o mundo”, com uso bastante focado e de interação fluida. O domínio das ferramentas tecnológicas é uma forma de inclusão em uma sociedade que não os vê”, constata o professor de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, José Francisco Sarmento.
Assim como os jovens brancos, os indígenas compartilham da sensação de “pertencimento” em relação às novas tecnologias como a internet, por exemplo. Em sua opinião, “as comunidades devem se preparar para discutir o que querem dos espaços virtuais, como podem aproveitar de maneira melhor do que fez e faz a nossa sociedade”, afirma José Francisco Sarmento, professor da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, em entrevista concedida, por email, à IHU On-Line.
Ele conta que “poucas aldeias têm acesso à internet nas escolas, e existem famílias e grupos que vivem na beira da estrada esperando o momento de retomada de suas terras. Imagino, então, que não podemos dizer que a inclusão digital seja uma realidade, mas podemos dizer que existem focos digitais em algumas comunidades”. Algo que chama sua atenção é a diferença entre o foco no uso da internet pelos jovens indígenas e os da cidade: “a capacidade de se concentrar até atingir um objetivo. Posso dar como exemplo as oficinas de edição, em que o aprendizado ocorre de maneira mais rápida, desde a manutenção de equipamentos até o acesso às mídias sociais. É impressionante como essa interação se dá de maneira fluida”.
Em sua opinião, a forma como os indígenas se relacionam com a web, por exemplo, é mais focada, como “uma janela para o mundo”, ao passo que os brancos compreendem-na de forma mais recreativa, quase como sinônimo de rede social. “Já o jovem indígena vê essa possibilidade de manipulação e domínio como uma ferramenta que possa incluí-lo em uma sociedade que não o vê”.
José Francisco Sarmento é professor da UCDB, é graduado em Desenho Industrial e Comunicação Visual pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), onde cursou mestrado em design, defendendo a dissertação Um Estudo do Grafismo das Cestarias dos M byá Guarani de Paraty-Mirim. É doutorando em Educação pela UCDB, sob a orientação do Prof. Dr. Antônio Brand.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como caracteriza os jovens indígenas hoje? Eles também sentem necessidade de interagir com as novas tecnologias, acessar a internet, por exemplo?
José Francisco Sarmento – Penso que essa sensação de “pertencimento” é uma característica da juventude de um modo geral, independente de sua etnia, grupo cultural, social ou nacionalidade. A juventude tem esse movimento natural de “pertencimento” e essa inquietude, essa curiosidade normalmente só se ameniza na maturidade, quando as descobertas de um modo geral se consolidam. Logo, voltando à sua pergunta, sim: os jovens indígenas têm essa curiosidade e já sentem essa necessidade de interação com os novos recursos midiáticos, quando lhe são dadas oportunidades.
IHU On-Line – O que muda nas comunidades indígenas e no perfil dos jovens a partir do acesso à rede? Como as diferentes gerações interagem e se relacionam a partir deste fenômeno?
José Francisco Sarmento – Acredito e tenho percebido que nas comunidades onde desenvolvemos projetos com este foco, em especial na nação Kaiowá, a relação está próxima das comunidades urbanas. A mudança está na percepção do acesso à informação. E digo percepção, porque a internet permite se ter uma informação rapidamente, mas nem sempre com um conteúdo bom, completo. Para se ter uma ideia dessa problemática informacional cibernética, o maior ou o mais popular “buscador” de informações, o Google, possui apenas 10% das informações disponíveis na rede. Logo, esse jovem, conectado com este universo, imagina que tem todas as informações do mundo e na verdade não as tem. As comunidades devem se preparar para discutir o que querem desses espaços virtuais, como podem aproveitar de maneira melhor do que fez e faz a nossa sociedade. Tenho ouvido relatos maduros a esse respeito entre professores indígenas. Em relação à interação das diferentes gerações, tenho percebido que há um distanciamento dialógico a respeito desses assuntos, pois o que se tem observado é que esses acessos de um modo geral acontecem na maioria das vezes no ambiente escolar.
IHU On-Line – O acesso à internet e às tecnologias já é uma realidade entre os jovens indígenas? A partir de que momento as novas tecnologias passaram a fazer parte do cotidiano destes jovens?
José Francisco Sarmento – Sinceramente, não tenho dados concretos para lhe afirmar esta proposição. Eu, pela experiência nesses projetos em nosso Estado (Mato Grosso do Sul), como observador e como agente, tenho visto que não podemos afirmar que seja uma realidade. Poucas aldeias têm acesso à internet nas escolas, e existem famílias e grupos que vivem à beira da estrada esperando o momento de retomada de suas terras. Imagino, então, que não podemos dizer que a inclusão digital seja uma realidade, mas podemos dizer que existem focos digitais em algumas comunidades. A escola, em meu entender, tem um papel fundamental na inserção dessas novas tecnologias nas aldeias. Para isso, as escolas têm que ter uma estrutura que comporte esses equipamentos, o que na maioria das vezes não acontece. Acho que, com a chegada de projetos relacionados à inclusão digital, como os pontos de cultura digitais, a proximidade com esses recursos tecnológicos digitais se fizeram mais presentes.
IHU On-Line – Que relação os jovens das comunidades indígenas mantêm com as novas tecnologias? Como se deu essa relação e como define o interesse deles pelas novas tecnologias?
José Francisco Sarmento – Um ponto que sempre me chamou a atenção, e é impossível não comparar com os jovens da cidade, foi o foco, a capacidade de se concentrar até atingir um objetivo. Posso dar como exemplo as oficinas de edição, em que o aprendizado ocorre de maneira mais rápida, desde a manutenção de equipamentos até o acesso às mídias sociais. É impressionante como essa interação se dá de maneira fluida. Acho que a curiosidade e concentração unidas resultaram neste processo rápido de aprendizagem, que contribui muito nos processos educacionais dessas ferramentas digitais. Sempre nos surpreendemos com a velocidade desses jovens indígenas no controle e manipulação dessas ferramentas. Eu particularmente, insisto, falo de nossa experiência com os Kaiowá. Nunca vi essa relação se não pelo viés da fluidez.
IHU On-Line – O contato com a internet é uma realidade entre os jovens brasileiros. Como a relação internet/juventude se dá nas comunidades indígenas? Qual o sentido da tecnologia para essa juventude?
José Francisco Sarmento – Na verdade, não vejo diferença na relação. Como falei anteriormente, jovem é sempre jovem. O que me chama a atenção é o olhar e os fins. Parece-me que nas cidades essa relação se tornou mais recreativa, fútil mesmo. Hoje, o jovem acha que internet é rede social. Tenho percebido que, para os jovens indígenas, a web é uma janela para o mundo, não excluindo as redes sociais. Hoje, essa tecnologia tem um sentido que acho que perdemos. Acredito que nossa facilidade de acesso a essas ferramentas banalizou essa relação. Já o jovem indígena vê essa possibilidade de manipulação e domínio como uma ferramenta que possa incluí-lo em uma sociedade que não o vê. Podemos fazer uma reflexão sobre esse assunto quando pensamos na mídia de um modo geral, na qual o índio ainda é retratado como atrasado, arcaico, preguiçoso. E só é notícia quando sequestra agentes da Funai, ocorrem suicídios, brigas por retomada de terra (que a mídia trata como invasão) e, claro, no dia do índio. A internet possibilita a eles criar canais, onde eles são os protagonistas, são agentes. Eles podem colocar na rede, e com um alcance grande, o que eles realmente são, nem pior, nem melhor, apenas diferentes. Acho que esse processo de relação midiática autônoma pode levá-los a conquistas importantes em nossa sociedade. Podemos citar como exemplo os vídeos que estão sendo postados na internet, em canais criados por jovens indígenas.
IHU On-Line – Como vê a busca da população indígena brasileira pela inclusão digital?
José Francisco Sarmento – Não posso sinceramente responder pela população indígena brasileira. A percepção que tenho dentro da realidade no Estado em que moro e alguns outros que conheço, é a de que existe realmente um grande desejo de se inserir nesse processo. Porém, falta um projeto sério estatal que possibilite este acesso. Este caminho não pode ficar nas mãos apenas de organismos não governamentais. Tem que ser um projeto de governo.
IHU On-Line – Quais são as características culturais dos jovens indígenas nos contextos urbanos?
José Francisco Sarmento – Minha resposta à sua pergunta parte muito do meu olhar de professor em uma instituição privada que tem um número considerável de alunos indígenas. Pois bem, quando falamos de manifestações culturais, representação cultural, etc., temos que atentar para dois fatores importantes. Um importante nome nos estudos interculturais, Milton Bennett, em seu artigo Intercultural Communication: A Current Perspective, de 1993, caracterizou dois tipos de cultura: a cultura objetiva e a cultura subjetiva. Cultura objetiva, segundo este autor, consiste nas manifestações produzidas pela sociedade, como literatura, música, ciência, arte, língua, enquanto estrutura, entre outras. Por outro lado, a cultura subjetiva pode ser encontrada em manifestações abstratas, como valores, crenças e no uso da língua.
A linguagem é um fenômeno que diz ao mundo quem nós somos e a cultura é atravessada pela linguagem – e nós também. Esse jovem tem outra língua como primeira (que não é obviamente a nossa), estuda em uma escola indígena (que ainda busca uma identidade, um caminho próprio, mas que, com certeza, é diferente da nossa) e cresce em um ritmo e dinâmica diferente da cidade. Ele chega à universidade, em que os alunos estão acostumados com as novas tecnologias de educação, com o ritmo frenético urbano, com a competitividade, com a exclusão e que não sabem lidar com o diferente. Esse jovem, mesmo “travestido” de jovem urbano, apresenta de alguma forma, ou em algum momento, suas características culturais – objetiva ou subjetiva.
IHU On-Line – Como tradição e tecnologia se entrelaçam na cultura indígena?
José Francisco Sarmento – Eu e um ex-aluno indígena do curso de design, da etnia terena e que tem se aventurado no universo do cinema com belos resultados estéticos, Gilmar Galache, estamos à frente de um evento que teve a sua primeira versão no ano passado, chamado Fórum de Discussão Sobre Inclusão Digital nas Aldeias (Fida). Este encontro, que já está caminhando para a segunda edição, tem como objetivo proporcionar uma reflexão junto às populações indígenas, em especial aos atores que de alguma forma estão envolvidos com essas dinâmicas digitais nas aldeias (pessoas que já realizaram filmes e/ou estão inseridas nas redes sociais e professores interessados neste processo de inclusão digital). Enfim, pessoas que possuem uma vivência e senso crítico a respeito deste tema nas mais diversas etnias. Reunimos-nos na aldeia Teykue, no Município de Caarapó, interior do Mato Grosso do Sul, e durante o encontro tivemos depoimentos surpreendentes de como os usos dessas tecnologias podem caminhar e contribuir para a “divulgação” entre os jovens dos vários processos tradicionais. A afirmação da oralidade como instrumento fundamental para o conhecimento de histórias relacionadas aos seus povos, pode receber uma contribuição dessas ferramentas, como, por exemplo, animação de mitos, registro fílmico de anciões contando suas histórias, registro de áudio de rezas para que as crianças possam ouvir em casa, etc. Estes exemplos são muito importantes para fazermos uma desmitificação da assimilação dessas tecnologias na cultura indígena. É interessante perceber a preocupação com o uso dessas ferramentas para fins educacionais e de registros históricos.
Ferramentas midiáticas
Ainda a respeito do Fida, ocorreu-me a lembrança de questões pontuais que foram discutidas, como a necessidade de projetos nesta área que atendam realmente às necessidades dos indígenas e que seja possível eles participarem efetivamente. Ou seja, projetos que levem em conta a falta de prática na formulação dos projetos, que é extremamente burocrática para se poder participar de editais nas áreas, ficando esses projetos apenas nas mãos de organizações não governamentais, que na sua grande maioria executam os projetos na área do audiovisual e não deixam equipamentos para as produções futuras, nem fazem um aprimoramento contínuo. Outra questão é o uso dessas tecnologias como ferramentas midiáticas que podem exercer um papel fundamental junto a estes povos que não têm voz na mídia, que é o de mostrar a realidade das aldeias, as injustiças cometidas por quem detém o poder e, claro, de dar visibilidade à sua cultura, criando assim um verdadeiro canal de informação das populações indígenas. Acredito que por meio dessas redes teremos, muito brevemente, uma possibilidade maior de ver expostos esses temas que permeiam a realidade dos povos indígenas no Brasil.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.