Supremo Tribunal Federal retoma julgamento do piso do magistério, contestado por cinco governadores. Republicamos a matéria “Os Obstáculos para Ser Professor”, publicado na Carta na Escola de fevereiro de 2010.
Em julho de 2008, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei que estabeleceu o piso nacional para os professores da rede pública. Na época, o valor era de R$ 950 mensais para uma jornada de 40 horas por semana, mas a lei foi contestada no Supremo Tribunal Federal (STF) pelos governadores do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e Ceará. O valor atualizado para 2011 é de R$ 1.187,14.
Leia “STF julga lei do piso nacional dos professores”, da Agência Brasil.
No dia 17, está na pauta do STF o julgamento do mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pelos governadores. A ação foi impetrada em 2008.
Carta na Escola, a revista de educação de Carta Capital, produziu, em fevereiro de 2010, uma matéria analisando a situação salarial do magistério. Baseou-se em três estudos: Professores do Brasil: Impasses e Desafios, produzido pela Fundação Carlos Chagas com dados do PNAD 2006; um levantamento salarial da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE); e uma comparação de vencimentos realizada pelo Ministério da Educação (MEC) entre 2003 e 2008. Abaixo, republicamos a matéria.
Os obstáculos para ser professor
Apesar do piso nacional, a profissão não é valorizada e é pouco procurada pelos pré-universitários.
Entre setembro e outubro de 2009, três estudos foram divulgados com o objetivo de traçar um panorama da situação salarial dos professores da Educação Básica no Brasil. O primeiro deles foi encomendado pela Unesco às pesquisadoras Bernadete Angelina Gatti e Elba Siqueira de Sá Barreto, da Fundação Carlos Chagas. No mesmo mês, um segundo levantamento foi realizado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE), com foco no pagamento recebido por professores em início de carreira. Já em outubro, o Ministério da Educação (MEC) comparou os vencimentos do magistério público entre 2003 e 2008.
A principal conclusão da pesquisa do MEC foi que houve um aumento do salário médio dos professores da Educação Básica pública. Em 2003, o valor médio era de R$ 994, em comparação aos R$ 1.527 obtidos em 2008. Foram utilizados dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo o estudo, que é separado por Estados, no Distrito Federal (DF) é onde se paga melhor aos professores, com renda média em R$ 3.360. Na outra ponta da tabela está Pernambuco, onde a média de rendimento é de R$ 982, a mais baixa do país. O valor pago pelo DF está muito acima da média nacional, pese que o segundo colocado, o Rio de Janeiro, paga R$ 2.004 em média ao magistério, e o terceiro, o Estado de São Paulo, R$ 1.845 em média. Entretanto, o estudo revela que, entre os 26 Estados e o DF, 16 têm salários abaixo da média nacional. Estes Estados estão concentrados nas regiões Norte e Nordeste. Porém, na Região Sul, Santa Catarina (R$ 1.366) paga abaixo. No Sudeste, por sua vez, Minas Gerais e Espírito Santo (R$ 1.443 e R$ 1.401, respectivamente) estão na mesma situação. As informações se referem a uma jornada semanal de 40 horas.
Para o presidente da CNTE, Roberto Franklin de Leão, os dados do MEC podem ser contestados. “Falar em média é muito complicado, porque os poucos Estados que pagam mais puxam o restante para cima”, relata. A pesquisadora Bernadete Gatti faz a mesma crítica: “Em uma classe, se um aluno tira nota zero e o outro nota dez, a média é cinco. A média camufla demais a situação”. Roberto de Leão defende que a questão da composição salarial também tem de ser levada em conta. “Há uma diferença entre salário e remuneração. Muitos Estados completam os pagamentos com abonos e gratificações.” Segundo o levantamento da CNTE, o salário de início de carreira para um professor com licenciatura plena e que trabalhe 40 horas por semana em Mato Grosso do Sul é de R$ 1.496,25. Porém, com as gratificações, este valor chega a R$ 2.394. A CNTE afirma que, ao fazer isso, os Estados desvalorizam a carreira, uma vez que, em caso de aumento salarial, a promoção incide apenas sobre o vencimento. “Ocorre o risco de um piso salarial transformar-se em teto, o que torna a carreira do docente inviável. Se o professor for, por algum problema, aposentado, também não se incorporam essas gratificações nas aposentadorias”, conclui Roberto de Leão.
Outro problema apontado por Bernadete é que os planos de carreira dos Estados e Municípios, quando existem, não são atrativos para os profissionais. “Em muitos casos, os planos são simplistas e colocam um valor final muito próximo ao da remuneração inicial”, relata. Nesse sentido, o estudo do MEC conta com uma tabela em que apenas professores com nível superior completo ou incompleto são considerados, numa média de, aproximadamente, 14 anos de escolaridade. Se comparado com os dados fornecidos pela CNTE para profissionais com licenciatura curta, há uma proximidade entre o salário inicial e a média em alguns Estados. No Ceará, por exemplo, a média indicada pelo MEC é de R$ 1.249, enquanto a remuneração de início de carreira é de R$ 1.092,27.
Escolaridade aumenta a renda
No relatório Professores do Brasil: Impasses e Desafios, Bernadete e Elba ressaltam a heterogeneidade das políticas salariais de docentes no país e as inúmeras variáveis que devem ser levadas em conta para compreender a situação de remuneração desses profissionais. Primeiro, é preciso diferenciar todas as etapas da Educação Básica. Professores que ensinam na educação Infantil e Fundamental têm salários menores do que seus colegas de Ensino Médio. Com dados da PNAD 2006, as autoras constataram que a média salarial na Região Sudeste de um professor em atividade na educação infantil é de R$ 809 reais, enquanto, nos anos do Ensino Médio, o valor é de R$ 1.066. Do mesmo modo, no Nordeste, as médias dos ensinos Infantil e Fundamental são R$ 390 e R$ 585, respectivamente, e de R$ 1.180 no Ensino Médio.
Uma segunda questão a ser levada em conta é a escolaridade dos profissionais. No Ensino Fundamental, docentes com até oito anos de escolaridade, ou seja, os professores que têm apenas o Ensino Médio completo, ganham no Sudeste R$ 429 em média. Já a média de profissionais que estudaram de 12 a 14 anos é de R$ 690, valor que sobe para R$ 1.151 para pessoas com até 17 anos de escolaridade. As autoras afirmam que as sucessivas graduações pesam positivamente nos vencimentos, o que indica uma coerência com os planos de carreira.
Por último, o cálculo das medianas permite entender a situação salarial da maioria dos docentes em cada região. A mediana é o ponto em que 50% do total dos entrevistados se situa abaixo de um determinado valor. Por exemplo, a média salarial, segundo a PNAD 2006, de um professor do Ensino Fundamental na Região Norte é de R$ 870, enquanto a mediana é de R$ 750. Isto significa que 50% dos professores desta região ganham menos que R$ 750. Um profissional na mesma situação na Região Sul tem como média de rendimento R$ 1.018 e uma mediana de R$ 850. Para Roberto Franklin de Leão, a avaliação das medianas permite constatar que a grande maioria dos professores da Educação Básica ganha abaixo das médias.
No estudo, as autoras comentam que a complexidade e a heterogeneidade da situação salarial dos professores devem-se, entre outros fatores, à organização descentralizada no que diz respeito a políticas de remuneração no país. “Há no país 5.561 municípios, 26 Estados e um Distrito Federal, cada qual com seus sistemas de ensino e regulamentações próprios”, escrevem. Apesar disso, Bernadete Gatti se posiciona contra a centralização das atribuições da educação. “A União deve exercer um papel regulador e complementador. Mas é impossível falar em uma política única para a educação em um país tão diverso como o Brasil.” A pesquisadora lembra que em alguns países com melhores condições de remuneração para professores, como Argentina e Estados Unidos, as políticas salariais também são descentralizadas.
Profissão menos valorizada e procurada
O aumento salarial registrado pelo MEC coloca a carreira do magistério mais bem remunerada em quase R$ 600 do que a média dos trabalhadores brasileiros, segundo revelou o jornal O Estado de S. Paulo. Porém, comparada às outras profissões com exigência de nível superior, a média salarial dos docentes é bem inferior. Segundo o estudo de Bernadete e Elba, o rendimento médio mensal de arquitetos é de R$ 2.018, enquanto o do magistério se aproxima de R$ 1.200. O valor pago aos professores também é inferior quando comparado com biólogos (R$ 1.791), enfermeiros (R$ 1.751) e farmacêuticos (R$ 2.212). O cálculo foi realizado para jornadas de 40 horas por semana.
A desvalorização da carreira do docente na Educação Básica é refletida na procura por cursos de Pedagogia e Licenciatura, como Letras e Matemática. “Entre 2001 e 2006, houve um aumento de 97% na oferta de cursos de Pedagogia no país, porém, o número de matrículas aumentou apenas 27%”, explica Bernadete. Para se ter uma ideia, as inscrições para o curso de Pedagogia da Universidade de São Paulo, no campus da capital, caíram de 3.310 na Fuvest 2006 para 1.380 na edição 2009 do vestibular. Para a pesquisadora, os cursos de Licenciatura são pouco valorizados nas universidades e tratados como de menor importância. “Há falta de materiais adequados e o número de aulas exigidas é cada vez menor.” Bernadete afirma que a desvalorização da carreira pelas redes de ensino municipal, estadual e as próprias universidades, e a representação do trabalho do professor como vocação, e não uma profissão, são fatores que contribuem para a queda da procura e para os baixos salários.
Piso é discutido no Supremo
Em julho 2008, o presidente Lula sancionou a Lei nº 11.738, que estabeleceu o piso nacional para os professores da rede pública. O vencimento inicial da carreira passou a ser de R$ 950 para uma jornada de até 40 horas semanais. A lei também estipulou uma data limite, 1º de janeiro de 2010, para que todos os Estados e Municípios se adequassem. Entretanto, em outubro de 2008, os governadores do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e Ceará protocolaram no Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, contestando a lei. O primeiro item questionado foi o que diz respeito à composição salarial. Os Estados defendem que R$ 950 seja o valor para a remuneração, e não para o salário. É o que acontece, segundo os dados da CNTE, em Santa Catarina, onde o vencimento inicial é de R$ 534,46, mas atinge R$ 1.023,24 com gratificações.
Em segundo lugar, houve discordância quanto ao item da lei que determina o tempo dedicado às atividades fora de sala de aula, como correção de provas e preparo de aulas. A lei prevê que essa porcentagem seja de um terço das 40 horas por semana. Os ministros do Supremo reconheceram ser necessário um tempo para essas atividades, mas, segundo o entendimento da Corte, cabe a cada Estado e Município estabelecer essa divisão. O julgamento da liminar permite aos Estados completarem o piso com as gratificações até que o mérito seja julgado – ainda não há previsão para o julgamento do mérito.
Segundo Roberto Franklin de Leão, isto abre espaço para que os Estados e Municípios não se adaptem à lei em 1º de janeiro. Todas as médias de rendimento mensal apresentadas pelo MEC, referentes a 2008, estão acima do valor estipulado para o piso. Entretanto, segundo as remunerações iniciais divulgadas pela CNTE, de setembro de 2009, alguns Estados ainda não atingiram o valor. No Ceará, por exemplo, o pagamento de um professor com nível médio é de R$ 739,29, incluindo salário e bonificações. Em Rondônia um professor na mesma situação ganha R$ 851,51.
A questão torna-se mais complexa na esfera municipal. Muitas administrações alegam não ter condições de pagar o novo valor. A lei responsabiliza a União por complementar os orçamentos dos entes que provarem ser incapazes de pagar o piso. Entretanto, os Municípios devem atender aos critérios estabelecidos pelo MEC para receber os complementos. “O MEC estabeleceu que 30% da arrecadação fiscal do Município seja destinada à manutenção da educação. Não está errado, mas essa porcentagem já inviabiliza alguns Municípios. Há locais que não possuem arrecadação própria, e não é porque não há condições de arrecadar, mas simplesmente porque eles não têm políticas de arrecadação”, conclui Roberto de Leão.
* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.