A partir da direita: Eric Gjertsen, da Payday, Carolyn Hill e Celyne Camen, da Rede Cada Mãe é uma Mãe que Trabalha. Foto: Kanya D’Almeida/IPS
A partir da direita: Eric Gjertsen, da Payday, Carolyn Hill e Celyne Camen, da Rede Cada Mãe é uma Mãe que Trabalha. Foto: Kanya D’Almeida/IPS

 

Filadélfia, Estados Unidos, 12/12/2013 – Sentada diante de uma mesa do mal iluminado café da biblioteca pública de Filadélfia, Carolyn Hill parece mais uma cliente. Contudo, poucos minutos de conversa bastam para saber que esconde uma profunda angústia. Hill trava uma feroz batalha contra a cidade de Filadélfia, cujo Departamento de Serviços Humanos (DSH) retira de suas famílias biológicas e coloca sob custódia do Estado mais meninos negros do que qualquer outra cidade de seu tamanho no resto dos Estados Unidos.

O único motivo para não devolverem suas filhas adotivas, disse à IPS, é por ser uma mulher negra, solteira e pobre, análise compartilhada por muitos ativistas e especialistas que trabalham para reunir famílias desmembradas pelas autoridades estaduais. No dia 3 de abril de 2011, o DSH da Filadélfia colocou sob seus cuidados as duas sobrinhas de Hill, de um e dois anos, depois que retirou os direitos da mãe biológica por acusações de abuso de drogas.

Apenas um ano depois, enquanto processava a documentação necessária para conceder a Hill o status de mãe adotiva legal das meninas, uma trabalhadora social do Serviço Luterano de Infância e Família, uma agência privada contratada pelo DSH, considerou que ela era inadequada para adotar, ou mesmo para proporcionar um lar de acolhida. Citando sua falta de educação como motivo para a retirada imediata das pequenas, a trabalhadora social as levou, sem avisar, bem antes das férias de Páscoa.

“Quando elas vêm me visitar, ficam apenas 15 minutos. O que se pode saber de alguém em 15 minutos. Eles chamam isso de inspeção de lares, mas são mais invasões de lares”, contou Hill à IPS. Na época ela desconhecia seus direitos como cuidadora e, buscando ajuda desesperadamente, encontrou a organização DSH – Devolva Nossos Filhos, entidade de autoajuda com sede na Filadélfia coordenada pela Rede Cada Mãe é uma Mãe que Trabalha.

Junto com essa comunidade de voluntários e assessores legais, Hill passou os últimos dois anos cavando até chegar ao núcleo de uma política sistemática de retirada de meninos e meninas na Filadélfia. Esta começa com assistentes sociais pouco qualificadas e carregadas de tarefas que atendem as linhas telefônicas de emergência para a proteção da infância, e passa por todos os níveis de trabalhadores sociais, agências, tribunais e “defensores das crianças”.

Quem apresentar uma demanda contra um pai ou uma mãe só tem que ligar para uma das muitas linhas telefônicas nacionais de emergência, que repassam a ligação para agências como o DSH para que as investigue. O DSH desta cidade não respondeu aos pedidos da IPS para dar declarações para esta matéria. Os assistentes sociais que fazem a investigação podem, então, listar o pai em questão em um registro central de pessoas que abusam de crianças com base em nada mais do que uma interação de uma hora com a família.

“Em alguns casos, os pais podem apelar, mas em outros essa possibilidade simplesmente não existe”, explicou à IPS Phoebe Jones, integrante da Rede Cada Mãe é uma Mãe que Trabalha. Uma vez feita a denúncia por maus tratos, os assistentes sociais podem entrar nas casas para revistá-las sem necessidade de apresentar uma ordem. Em 29 Estados, esses funcionários têm liberdade para “confiscar” uma criança imediatamente se o pai ou a mãe resistirem a alguma dessas medidas.

Nos demais Estados, acrescentou Jones, os trabalhadores sociais podem pedir às agências da ordem que lhes entreguem a criança. Hill culpa por seu atual calvário os assistentes sociais que cuidaram de seu caso. Segundo ela, só o que viram foi que vivia em uma casa pobre, sem levar em conta que sempre tinha comida na geladeira, uma refeição caseira no forno e risadas no lar.

“Minhas sobrinhas e eu saíamos para passear juntas, jantávamos juntas, brincávamos juntas. Agora, estão perdidas todos os dias em um centro de cuidados diurnos das seis da manhã até seis da tarde”, contou  Hill. Após lutar um ano inteiro, protestando diante do tribunal, apresentando infinita documentação como prova de suas capacidades como tutora, detalhando o apoio dado por sua família estendida, sua igreja e sua comunidade, Hill finalmente acertou que o DSH se retratasse.

Entretanto, logo que foi declarada apta para voltar a receber as meninas, o Centro de Apoio aos Defensores da Infância interveio. Segundo Celyne Camen, da Rede, os Defensores da Infância cuidam de representar meninos e meninas nos julgamentos por dependência. O trabalho desses defensores consiste em pressionar a favor do que pensam ser o melhor para cada criança, independente do que a própria criança possa querer. No caso de Hill, uma das meninas tinha apenas 15 meses.

“Como pode uma menina dessa idade ser representada por estranhos que não entendem suas necessidades?”, perguntou Camen. Para ela, a direção do Centro de Apoio representa os enormes incentivos financeiros que fazem funcionar o sistema de cuidados e acolhida e, por fim, de retirada de crianças de suas famílias biológicas nos Estados Unidos. Está integrada por financistas suíços, bancos de investimento como o Merrill Lynch, gigantes legais como Blank Rome e alguns dos presidentes mais ricos das principais empresas farmacêuticas.

“Essas corporações estão muito interessadas em reestruturar esse setor em particular para colocar maior influência em mãos privadas”, denunciou Camen. “Todos os serviços necessários para fazer funcionar essa operação representam a possibilidade de enormes contratos do governo para empresas privadas”, acrescentou.

A Aramark, empresa de administração de serviços e suprimentos, tem uma posição destacada na direção do Centro de Apoio. Entre seus muitos clientes, há 600 instituições correcionais, às quais fornece “de tudo, de uniformes até lápis”, detalhou Camen, apontando um fio condutor entre as instituições de cuidados com a infância e o vasto arquipélago de prisões dispersas por todo o país, como “o duto da escola para a prisão”.

Além disso, segundo Eric Gjertsen, da rede Payday, uma organização com sede na Filadélfia que trabalha com homens afetados pelas práticas do DSH, o sistema também se serve de provas de capacidade parental, tipo de manejo da raiva, avaliações psicológicas e exames médicos feitos por centenas de empresas privadas.

Todd Lloyd, diretor de políticas de bem-estar infantil da organização sem fins lucrativos Pennsylvania Partnerships for Children, disse que dar teto para uma única criança pode custar entre US$ 10 mil e US$ 66 mil ao ano. Também é preciso considerar “que os custos de acomodação não são os únicos envolvidos na retirada de uma criança de sua família, havendo também custos administrativos”, como os judiciais.

Dito isto, as finanças requeridas para operações de retirada de crianças em todo o país proporcionam ao DSH da Filadélfia um orçamento operacional de US$ 600 milhões. Isso é “suficiente para transformar a situação de muitas crianças apontadas como vítimas de negligência, junto com suas famílias”, argumentou Jones à IPS.

Hill afirmou que a luta a colocou em contato com dezenas de pais que também lutam para recuperar seus filhos. Muitos fazem malabarismos para manter grandes famílias de cinco ou mais filhos, e a grande maioria informa ter perdido o pátrio poder por inconvenientes menores. “Conheci uma mãe cuja tia pediu ajuda ao DSH. Quando chegaram, não encontraram nada errado, a não ser a privada entupida. Mas levaram seu filho. Isso não tem sentido. Se você entope a privada não precisa da DSH, precisa de um encanador”, afirmou. Envolverde/IPS