Os professores se queixam, com razão, da falta de diálogo por parte do governo. Reivindicam o cumprimento, pelo governo estadual, do piso salarial nacional previsto pela lei 11.738/08 e reconhecido como constitucional pelo STF.
A greve dos professores da rede estadual de ensino de Minas Gerais já ultrapassou a marca dos cem dias. Ao contrário do que vem sendo dito em vários meios de comunicação, a adesão é grande, maciça, e as assembleias da categoria têm contado com uma participação ampla, tanto dos profissionais da educação quanto de outros setores da sociedade: sindicatos, movimentos sociais, movimento estudantil, ou mesmo indivíduos que reconhecem valor à causa.
Aconteceu no dia 21 de setembro de 2011, na Praça da Assembleia, no bairro Santo Agostinho, Belo Horizonte, como parte dos acontecimentos da greve, uma concentração e assembleia para discussão de pautas do movimento dos professores do Estado de Minas Gerais. Na assembleia foi votada a manutenção da greve por período indeterminado, até que as pautas reivindicativas sejam discutidas e negociadas, ou seja, até que o governo aceite dialogar e algum acordo seja possível. É a greve dos profissionais da educação mais longa dos últimos dez anos.
Os professores se queixam, com razão, da falta de diálogo por parte do governo, que se recusa a negociar uma solução. O que eles reivindicam: o cumprimento, pelo governo estadual, do piso salarial nacional previsto pela lei 11.738/08 e reconhecido como constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do poder judiciário, responsável pela defesa dos direitos e deveres previstos na constituição brasileira. O piso salarial teve sua constitucionalidade reconhecida em acórdão publicado no dia 21. Além disso, o movimento reivindica outros direitos para a categoria, como a reconstrução do plano de carreira e a revogação da lei do subsídio.
Com a publicação do acórdão pelo STF, o movimento dos professores ganhou força em sua argumentação. Essa publicação torna ainda mais latente o descompromisso do governo com a classe professoral. O que se exige, para além de salários justos e dignos para um profissional de reconhecida importância – e em consonância com isso – é o cumprimento da lei. Depois de tentativas sucessivas de criminalização do movimento grevista na tentativa de deslegitimá-lo (prática comum, levada a cabo por meio de mentiras, em relação a todo movimento que se levanta em defesa de alguma causa e contra algum poder estabelecido), de apelos à população na grande mídia, na tentativa de colocar a população contra os professores, depois de tudo isso, quem está à margem da lei é o próprio Estado.
Os últimos ataques mais significativos sofridos pelo movimento foram a decisão do desembargador Roney Oliveira, no dia 16 de setembro, determinando a suspensão do movimento grevista com o retorno imediato dos professores e com previsão de pesadas multas, e a dura repressão policial a uma manifestação na Praça da Liberdade, em ocasião da inauguração do relógio que fará a contagem regressiva dos mil dias até a Copa do Mundo de 2014.
A decisão do desembargador baseou-se na ideia de que o movimento vem sendo abusivo em sua duração e por isso tem prejudicado os estudantes, os quais, muitos deles, dependeriam, segundo a sensibilidade incomum e a linguagem pomposa do desembargador, da alimentação escolar. O sindicato, de sua parte, rebate dizendo que a própria duração estendida da greve se deve ao fato de o Estado se recusar a negociar e o próprio Tribunal de Justiça ter se omitido em atender ao pedido do sindicato de mediação das negociações, pedido feito em princípios do mês de julho.
Já o uso de força policial contra uma manifestação pacífica, não teve qualquer justificativa, por cínica que fosse. Diante da festividade, custeada com dinheiro dos contribuintes, para o lançamento do tal relógio, os manifestantes (que, aliás, não eram apenas professores, mas diversas entidades da sociedade) foram impedidos de se aproximar. Afinal, a festa era para convidados selecionados, e os professores não usavam black-tie. Então, para esses, bombas, cassetetes e tiros de borracha.
Assista no YouTube a um vídeo da repressão.
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Esta situação chama a atenção por vários motivos, mas que talvez possam ser reunidos em um só: o descaso com a educação. É triste pensar na forma como a educação vem sendo tratada no Brasil. Primeiro, privilégio de uma pequena elite. Depois, apesar das boas intenções e de uma tentativa de universalização, o máximo que se conseguiu foi uma ampliação do acesso, mas sem qualidade. Educação é processo de formação do ser humano, um processo amplo, do qual a formação escolar é uma parte importante. O professor é uma parte fundamental desse processo, ele é o responsável por “transmitir” o conhecimento produzido a duras penas e conservado ao longo dos séculos pela humanidade, ele é o responsável por fazer com que isso chegue ao estudante, por guiá-lo, por orientá-lo, como alguém que já passou por esse processo, que já trilhou esse caminho. Como é possível alguém que não possui motivação, com a “cabeça cheia” das menores preocupações materiais, inseguro quanto ao futuro e mesmo ao presente, poder desempenhar bem seu papel? A resposta é simples: não é possível. Então, é preciso compreender esse movimento em Minas Gerais em seu sentido mais amplo: é um movimento que busca mais do que salários e planos de carreira, é um movimento que luta pela valorização de algo valioso. Valorizar o professor, possibilitar a este uma vida digna, é valorizar sua função, sua atividade e, por conseguinte, o próprio conhecimento.
É preciso que a sociedade se dê conta disso, de que não se trata de um probleminha qualquer, mas diz respeito à própria vida que levamos, à maneira como levamos nossas vidas. Se julgamos o conhecimento um bem importante para a formação de uma pessoa, para a constituição de uma pessoa enquanto sujeito, e para o exercício pleno da cidadania, não podemos menosprezar a importância de um movimento como o que vem acontecendo. Não é possível que haja sociedade democrática sem uma educação de qualidade, e é isto também o que está em questão. Valorizar a educação é valorizar o exercício pleno da democracia, o que não se tem visto por aqui.
Talvez mais um motivo, indissociável deste: ao lado do descaso com a educação, a maneira, o critério do Estado para selecionar a forma como aloca os recursos públicos. Afinal, os compromissos de campanha precisam ser “honrados”, e a Copa do Mundo, evento maior da poderosa indústria do espetáculo, trará grandes investimentos estrangeiros, grandes oportunidades para os negócios. Mas que fique claro, para um grupo seleto de privilegiados e que, quer gostemos ou não, não seremos nós.
Tudo isso nos faz lembrar, a título de uma triste constatação, o dito de Marx e Engels de mais de 150 anos atrás: “O governo do estado moderno é apenas um comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia”. Bom, assim tem sido, prova disso é a atuação do próprio Ministério Público, órgão responsável pela defesa dos chamados “direitos difusos”, da ordem constitucional, portanto, da educação também. A decisão do desembargador, referida acima, baseou-se numa denúncia do Ministério Público. Ora, parece-nos um desrespeito à lógica e à inteligência, além de uma falha moral daqueles que estão em posição de tomar as decisões, deixar de exigir do Estado o cumprimento da lei que garante o piso salarial e o plano de carreira (o que resolveria imediatamente o problema), fazendo valer uma decisão do órgão máximo do judiciário nacional, fazendo prevalecer portando o Estado Democrático de Direito e, em vez disso, tentar minar um movimento legítimo e garantido também pela Constituição, tornando-o ilegal. Prova de que estamos longe ainda, na prática, de uma democracia real, que atenda aos anseios de todos. Na verdade, a democracia é algo a ser conquistado diariamente, na luta, nas lutas, ela não vem e não virá dos gabinetes dos engravatados.
Na peça Eles não Usam Black-Tie, de 1958, de autoria de Gianfrancesco Guarnieri, e depois levada para o cinema em 1981 com o mesmo título e sob a direção de Leon Hirszman, vemos o dilema do personagem Tião que, ao saber da gravidez de sua namorada Maria, faz planos, sonha em construir uma vida para o casal. Ao mesmo tempo em que se preocupa, se entusiasma com a ideia de ser “pai de família”. Nesse ínterim, os operários da fábrica em que Tião trabalha discutem a possibilidade de uma greve. Tião hesita, precisa pensar no futuro, e acaba furando a greve. O filme coloca questões interessantes, faz pensar em todas as dificuldades que se enfrenta ao aderir a uma greve. Evidentemente, são contextos diferentes, mas há questões perenes. A mulher grávida de Tião pode representar qualquer outra responsabilidade. Pode ser as contas atrasadas. Pode ser um familiar doente. Dívidas. São coisas diferentes, mas que, nesse caso, parece-nos, podem quase se equivaler, são responsabilidades importantes e coisas caras às pessoas. Sabemos que os professores, todos eles têm suas vidas, suas famílias, suas contas a pagar. É isso que torna esse movimento mais digno de respeito e admiração: a justeza da causa e o esforço em levá-la adiante.
Essa greve tem sido um exemplo, um bonito exemplo de luta pela efetivação de direitos, de luta por reconhecimento de algo que é justo. É uma luta por justiça. É uma coisa que os movimentos sociais sabem há muito tempo, e que as pessoas descobrem a cada vez que são afetadas em seus direitos: direitos só se efetivam, só se conquistam, à custa de muita luta. Não é possível esperar pela boa vontade de governos ou quem quer que seja. Além de frágeis, precários, sujeitos a retrocessos, os direitos são históricos, são apropriados, são produto de disputas. É isso que se tem visto: pessoas reivindicando para si direitos que, mesmo do ponto de vista do próprio jogo institucional, já foram reconhecidos e que lhes têm sido negados. Como vimos dizendo, é uma questão de justiça, e quando se trata disso, não se pode fazer concessões. Diz respeito a todos e a cada um. Se se faz uma concessão aqui, já não se pode exigir mais nada adiante, qual seria o parâmetro? Desejamos força e sorte ao movimento (porque coragem não tem faltado). Se os professores ganham essa, todos ganhamos. Se eles perdem, todos saímos perdendo.
* Publicado originalmente no NINJA: Núcleo de Investigações em Justiça Ambiental e retirado do site da Revista Fórum.