Os temores da inflação perturbam a alma dos agentes do mercado. Foto: Mantovani Fernandes/AE

Em um país que conviveu, há menos de duas décadas, com o fantasma da hiperinflação, todo cuidado com os aumentos de preços é pouco. Só que, nas últimas semanas, o tema ganhou espaço na mídia menos por conta do comportamento dos principais índices, ainda dentro dos níveis esperados pelo Banco Central (BC), do que por razões ideológicas. O chamado “mercado” ainda não engoliu a decisão do Comitê de Política Monetária (Copom), para eles inesperada, de inverter a trajetória da taxa básica de juros, com o anúncio de um corte de meio ponto porcentual no fim de agosto.

O último resultado do IPCA, o índice oficial medido pelo IBGE, apontou uma alta de 0,37% nos preços em agosto. Um porcentual que se presta a diversos exercícios estatísticos. A situação é mais feia no retrovisor: nos últimos 12 meses, a inflação acumula 7,23%, bem acima dos 6,5% estabelecidos como teto no regime de metas, estourado pelo quarto mês consecutivo. Quando se olha para a frente, no entanto, o horizonte se mostra mais limpo: mantido esse ritmo, o IPCA fecharia o ano em alta de 5,7%, ainda acima do centro da meta (4,5% ao ano), mas dentro da margem tolerável de dois pontos porcentuais. Doze meses adiante, convergiria para os 4,5% ao ano.

Nem tanto ao céu nem ao inferno. O índice tradicionalmente acelera até o fim do ano, mas não há razões para imaginar que vá fugir ao controle. Ao acusar o BC de abandonar o regime de metas de inflação, o mercado deixa de lado uma das regras mais elementares da política monetária, o efeito retardado dos ajustes na taxa básica de juros sobre o mundo real. Ou seja, ao longo de todo o segundo semestre, a atividade econômica estará sob os efeitos do aperto realizado nos primeiros seis meses do ano, quando a Selic foi elevada em 1,75 ponto porcentual. O alívio, embora apontado desde já como uma aposta temerária pelos críticos, só será plenamente percebido a partir do início de 2012.

Em suas explicações para o afrouxamento nos juros, o Copom citou em primeiro lugar a deterioração do cenário internacional. Entre as duas últimas reuniões do Comitê, os Estados Unidos tiveram o rating da dívida soberana rebaixado e a crise fiscal europeia ganhou novos e mais preocupantes contornos. Cresceu a percepção de que a recuperação econômica dos países desenvolvidos levará alguns anos para ocorrer. Não é pouca coisa.

“O BC não está errado em manifestar essa preocupação com os efeitos da crise internacional, mas se mexeu muito rápido para os padrões a que estava acostumado”, afirma o coordenador de análises econômicas da Fundação Getulio Vargas (FGV), Salomão Quadros. No dia 15, o especialista conduziu a divulgação do Índice Geral de Preços-10 (IGP-10), que mede os preços a produtores e consumidores entre os dias 11 do mês anterior e 10 do mês corrente. Após dois meses de variação negativa, o índice voltou a acelerar até o início de setembro, em 0,63%. “Embora tenha sido mais alto, o IGP-10 continua em desaceleração no acumulado de 12 meses, e não há sinais de que vá permanecer em alta.”

A exemplo do IPCA, o IGP-10 foi pressionado pela elevação de preços de produtos agrícolas, que voltaram a subir em agosto. “A diferença é que o IPCA sofre maior influência dos preços dos serviços, que ainda têm espaço para subir, porque a renda da população e o mercado de trabalho seguem aquecidos”, avalia Quadros. Ainda assim, o especialista prevê que a partir de outubro o índice oficial começará a apontar queda em 12 meses, por força da comparação com os mesmos meses de 2010, quando os preços das commodities agrícolas provocaram forte aceleração. “A questão é se a desaceleração será suficiente para evitar que o teto da meta seja superado no ano.”

A gerente do IBGE responsável pelo IPCA, Eulina Nunes, aponta os alimentos e o transporte como os dois maiores culpados pela alta da inflação neste ano, com peso de 40% na elevação do índice até agora. “Esses dois itens representam um custo para outros setores, inclusive o de serviços.” Em agosto, ao menos um dos vilões mudou de lado: os preços relacionados a transportes caíram 0,11% no mês, após subirem 0,46% em julho. Os alimentos, por sua vez, avançaram mais de 6% neste ano, depois de fechar 2010 acima dos 10%.

O economista Fábio Romão, da LCA Consultores, aposta que o IPCA atingirá 6,3% em 2011, abaixo do limite máximo fixado no regime de metas de inflação. Embora acredite que os serviços vão continuar a puxar para cima o índice, ele descarta que esses aumentos possam se espalhar por outros setores. “A inflação de serviços responde à alta de custos, ou seja, olha para o passado, mas depende de um patamar elevado de renda que dê chancela ao repasse de preços para o consumidor.”

Após um ganho real médio de 3,8% em 2010, a LCA projeta que os rendimentos dos trabalhadores vão subir 3,2% neste ano, o que torna difícil conter os preços do setor de serviços. Com a previsão de reajuste do salário mínimo em 7,5%, Romão vê poucas chances de o BC conseguir trazer a inflação para o centro da meta até o fim do próximo ano. E prevê um IPCA de 5,1% em 2012.

Em entrevistas recentes, o presidente do BC, Alexandre Tombini, tem reforçado a intenção de cumprir à risca o regime de metas no ano que vem. Para chegar aos 4,5% de inflação, a instituição se apoia em um crescimento menor do PIB, cuja previsão de 4% deverá ser revista, e em um impacto da crise internacional equivalente a um quarto do provocado pela turbulência financeira do fim de 2008.

Tombini inclui nesse cenário o esforço fiscal do governo, que anunciou um corte adicional de R$ 10 bilhões nos gastos previstos para este ano, além dos R$ 50 bilhões prometidos no primeiro trimestre. E, aos mais incrédulos, reitera que o governo cumpriu até julho 80% do superávit de R$ 117 bilhões proposto para 2011. Segundo o presidente do BC, neste trimestre a inflação acumulada em 12 meses atingirá um pico, para despencar cerca de dois pontos porcentuais até maio do ano que vem.

Ao optar pelo corte de juros, o Copom também levou em consideração os efeitos das medidas adotadas para frear o ritmo de expansão do crédito, entre o fim de 2010 e o início deste ano. Vistas com descrédito por parte dos analistas, que enfrentaram dificuldades para inseri-las em seus modelos econométricos de previsão, as restrições aos empréstimos cumpriram a função de impedir bolhas e ajudaram a segurar a inflação de bens financiáveis, como os automóveis. O resto do trabalho de contenção ficou a cargo dos próprios bancos, que viram a inadimplência subir nos últimos meses e se tornaram mais rigorosos na concessão de recursos.

Mais sensível a uma política monetária restritiva, o setor industrial é o primeiro a tornar visíveis os efeitos do esforço anti-inflacionário do primeiro semestre. Embora oficialmente não seja apontado como causa, e sim como efeito da redução dos juros, o socorro à indústria estaria entre os fatores a motivar o fim do aperto. Antes mesmo de um alívio nas taxas cobradas pelos bancos, a decisão do Copom deu início a um processo, de extensão ainda incerta, de desvalorização do real, o que pode favorecer as exportações. A cotação do dólar chegou a subir por dez dias consecutivos sob o impacto do anúncio da queda da Selic.

Embora considere muito cedo para avaliar possíveis impactos da alta da cotação do dólar sobre a inflação, Quadros, da FGV, considera pouco provável que haja repasses significativos sobre os preços dos produtos importados no curto prazo, sobretudo se a crise internacional afetar o comércio internacional. “Ninguém vai querer abrir mão da fatia conquistada no mercado brasileiro.”

A desaceleração nas fábricas é uma das explicações para o esfriamento do mercado de trabalho brasileiro. Embora a preparação para o fim do ano tenha permitido que o nível de contratações voltasse a subir em agosto, com 190 mil postos abertos, o movimento foi o mais fraco para o mês nos últimos três anos. Em São Paulo, o setor fechou 13 mil vagas entre julho e agosto, o pior resultado para o período desde 2006.

“Em 2008, o uso da capacidade da indústria de transformação foi de 87%, mas, neste ano, em decorrência da crise internacional, tende a ficar abaixo de 83%”, afirma o professor da FGV, Ernesto Lozardo. “O segmento de transformação responde por 60% do setor. Portanto, qualquer erro da política macroeconômica poderá causar danos irreparáveis à indústria.”

O economista defende que o BC tenha como objetivos garantir, além de uma inflação dentro dos limites da meta, um crescimento do PIB superior a 3% nos próximos anos. E vê contrassenso na atitude do Banco Central Europeu, que se mantém irredutível no combate à alta de preço,s enquanto a região deveria combater a queda na atividade econômica e a alta do desemprego. “Na era Tombini, o mundo financeiro ficou mais incerto, mal estruturado, com elevado risco operacional e, por isso, exigirá do BC soluções pragmáticas e emergenciais, que possibilitem a manutenção do crescimento, do emprego e do poder aquisitivo das famílias.”

* André Siqueira é subeditor de Economia de CartaCapital[email protected].

** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.