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Outro tratado para as mulheres?

Mulheres protestam contra a insegurança e as más condições de vida em um acampamento localizado no centro de Porto Príncipe, em janeiro de 2011. Foto: Ansel Herz/IPS
Mulheres protestam contra a insegurança e as más condições de vida em um acampamento localizado no centro de Porto Príncipe, em janeiro de 2011. Foto: Ansel Herz/IPS

 

Nações Unidas, 4/11/2014 – É possível prevenir ou eliminar a violência contra as mulheres com um novo tratado internacional que venha a ser assinado e ratificado pelos 193 Estados membros da Organização das Nações Unidas (ONU)? A sul-africana Rashida Manjoo, relatora especial da ONU sobre Violência Contra a Mulher, afirmou à Assembleia Geral que a falta de um acordo legalmente vinculante é um dos obstáculos para a promoção e proteção dos direitos femininos e da igualdade de gênero.

“É necessária, com urgência, uma série diferente de leis e medidas práticas para responder e prevenir a violação sistêmica, generalizada e dominante dos direitos humanos que principalmente sofrem as mulheres”, enfatizou Manjoo aos delegados. Porém, organizações não governamentais e de mulheres assumiram uma posição mais cautelosa diante de um novo tratado.

“Em princípio, a ideia de uma legislação mais forte e mais específica é boa, mas sabemos que não é suficiente” para mudar práticas e atitudes, apontou Sanam Naraghi-Anderlini, cofundadora da Rede Internacional da Sociedade Civil em Ação (Ican). “Há muitos países – desde os Estados Unidos a membros da União Europeia e além, como o Paquistão – onde as leis existem, mas a violência contra as mulheres continua em muitas esferas da vida, se manifestando de diversas formas e em proporções horrendas. Portanto, a legislação tem que ser combinada com outros pilares e elementos que garantam sua efetiva implantação”, destacou

Palitha Kohona, representante permanente do Sri Lanka na ONU e ex-chefe da Seção de Tratados da ONU, pontuou à IPS que é necessário um apoio internacional substancial, não só para que seja adotado o texto de um tratado, mas inclusive para que comecem as negociações, talvez a partir de uma resolução das Nações Unidas. Os que promovem um tratado “terão que convencer a comunidade internacional de que existe uma necessidade real de contar com esse instrumento legal”, acrescentou.

Kohona também destacou que isso implicará assegurar que os instrumentos legais internacionais já existentes são inadequados para abordar os problemas que aqueles que promovem um novo tratado buscam atacar. “Embora a violência de gênero, ou qualquer outra forma de violência, deva ser condenada sem reservas, isso apresentará um desafio para os promotores de um tratado” sobre a primeira, explicou.

“Também se sabe que, embora as leis possam ser úteis para modificar atitudes sociais e comunitárias, será preciso mais de um instrumento internacional para acabar com esse comportamento abominável”, acrescentou o embaixador. Segundo ele, a humanidade deve se colocar contra a violência, em particular a baseada no gênero. “Como disse um filósofo, habitamos este planeta apenas por um curto período. Por que ferir o outro durante esta breve existência?”, argumentou.

Mavic Cabrera-Balleza, coordenadora internacional da Rede Global de Mulheres Construtoras de Paz (mais conhecida pelo seu nome em inglês, Global Network of Women Peacebuilders), assinalou à IPS que a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (Cedaw), adotada em 1979 pela Assembleia Geral da ONU, já cobre a eliminação da violência contra elas.

“Por que precisamos de outra lei?”, questionou Cabrera-Balleza. “Não vejo como ter outro tratado sobre os mesmos assuntos apresente algum valor agregado. Em todo caso, corremos o risco de debilitar a Cedaw, pela qual lutaram mulheres de todo o mundo e que já tem quase a ratificação universal”, acrescentou. Ela também afirmou que não tem sentido pressionar os governos, e ressaltou que, além do mais, “por haver muitos governos conservadores no poder, existem poucas possibilidades de se conseguir a ratificação de outra lei”.

Cabrera-Balleza recordou que os instrumentos internacionais à disposição atualmente e que promovem e protegem os direitos das mulheres, o empoderamento feminino e a igualdade de gênero, foram conseguidos principalmente mediante as conferências mundiais da década de 1990. “Já não temos mais esse impulso global. Nunca voltará a haver uma conferência mundial sobre a mulher da magnitude e do impacto que teve a de Pequim em 1995”, opinou. “Sou totalmente a favor das medidas práticas, mas basta de adivinhações legais, por favor. As mulheres de todo o mundo já estão cansadas de leis e políticas; o que querem é que sejam implantadas”, ressaltou.

Naraghi-Anderlini declarou à IPS que “não podemos negar a adversa reação cultural ou ‘religiosa’ contra a chamada agenda progressista em matéria de direitos femininos”. Em sociedades dominadas por normas patriarcais, onde se considera que a mulher é propriedade do homem, os conservadores sociais podem facilmente aproveitar as tradições e normas culturais para gerar uma onda de oposição contra os direitos delas, acrescentou.

“Vemos que forças externas (por exemplo, ideologia religiosa de origem saudita, Igreja Católica, etc.) propõem normas e práticas mais conservadoras”, explicou Naraghi-Anderlini. Portanto, no mínimo, as novas leis devem estar acompanhadas de mensagens criadas sob medida, e que sejam transmitidas, por exemplo, pelos meios de comunicação por meio de reconhecidas e respeitadas figuras nacionais, comunitárias ou religiosas, para desafiar essas normas.

Segundo Naraghi-Anderlini, é preciso uma efetiva capacitação e equipamento dos serviços de aplicação da lei a fim de poder implantar a nova legislação (por exemplo, dar atenção às vítimas, proteger os denunciantes, etc.), e a polícia tem de responder por suas ações, omissões ou transgressões. Também seria interessante e inovador introduzir um mecanismo ascendente para determinar responsabilidades.

Por exemplo, disse Naraghi-Anderlini, a ONU estaria disposta a apoiar uma campanha pela segurança das mulheres, na qual organizações femininas locais recebessem apoio técnico, financeiro e político necessário para chegar a líderes policiais, de aplicação da lei e das comunidades locais, para juntos redigirem um estatuto que obrigue as autoridades a garantir que protegerão as mulheres da violência?

E mais, prosseguiu Naraghi-Anderlini, a polícia nacional e suas versões locais estarão dispostas a assinar um estatuto no qual prometem proteger as mulheres que denunciam casos de violência, não violar ou assediar testemunhas e vítimas, impedir que se gere mais violência? “Se eles concordarem em assinar tal estatuto, então será um pacto social formado por atores locais que podem chamá-los à responsabilidade. Se não o fizerem, ou tentarem suavizar as condições, será o indicativo de uma profunda falta de vontade ou de compromisso político para com a segurança das mulheres”, apontou.

A relatora Manjoo disse à Assembleia Geral, no final de outubro, que, apesar dos progressos, há uma série de desafios que são obstáculos aos esforços para promover e proteger os direitos humanos das mulheres. Isso se deve amplamente à falta de um enfoque integral, que aborde os fatores individuais, institucionais e estruturais que são causa e consequência da violência contra as mulheres, ressaltou.

Expondo os argumentos a favor de um novo tratado, Manjoo explicou que, com um instrumento específico e legalmente vinculante, haveria um marco de proteção, prevenção e educação que reafirmaria o enunciado da comunidade internacional. Esse enunciado determina que os direitos femininos são direitos humanos e a violência contra as mulheres é, em si mesma, uma violação dominante e generalizada dos direitos humanos. Envolverde/IPS