Em entrevista, a coordenadora técnica do projeto Direito e Mudanças Climáticas nos Países Amazônicos, Paula Lavratti, afirma que as leis ambientais existentes nas nações que abrigam a floresta amazônica exercem uma função importante em relação às mudanças climáticas. O difícil é enfrentar as dificuldades para colocá-las em prática. Saiba como anda a situação em cada país.
O debate sobre desenvolvimento está no cerne do tema mudanças climáticas. Mas um outro tema extremamente ligado às alterações do clima é a questão do direito – e este assunto parece estar um pouco adormecido. Pouco se fala em legislação e sobre como as leis podem auxiliar na mitigação das emissões de gases de efeito estufa e na adaptação das cidades. Você participou da coordenação do projeto Direito e Mudanças Climáticas nos Países Amazônicos. Quais os resultados obtidos?
Quando começamos a trabalhar com a questão do clima em 2008, o tema era ainda mais incipiente no mundo das leis. Apesar de se ouvir muito sobre o problema, na época não se conseguia relacioná-lo com as atividades jurídicas. Ao perceber este gargalo, iniciamos o projeto que atuou em duas linhas, sendo a primeira de análise da legislação já existente nestes países. Após essa apreciação, nós passamos a identificar quais normas apresentam potencial tanto para serem utilizadas com o objetivo de mitigar a emissão de gases de efeito estufa como para auxiliar na adaptação da sociedade aos efeitos das mudanças do clima.
O projeto Direito e Mudanças Climáticas nos Países Amazônicos abrange Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela. Para a pesquisa foram abordados sete temas: desmatamento, construção civil, resíduos, agropecuária, desastres, energia e transportes. A surpresa foi constatar que, na maioria das nações, muitas das normas existentes, embora não tenham sido criadas para ter efeito sobre as alterações do clima, exercem um papel bastante importante seja na mitigação, seja na adaptação. Entretanto, o lado negativo da análise é o diagnóstico de que todos os países amazônicos enfrentam dificuldades para implementar a legislação existente, um problema crônico da região.
Mesmo com problemas de implementação da lei, o Brasil, por exemplo, instituiu novas normas para tratar a questão climática, como o Plano Nacional sobre Mudança do Clima ou a sanção, no final do ano passado, da Política Nacional sobre Mudança do Clima. Como os outros países amazônicos, tratam este tema?
Os países amazônicos têm estruturas políticas institucionais diferentes entre si, desde a forma de organização do país até a definição de quais esferas têm competência para tratar a matéria de meio ambiente. Este sistema organizacional varia muito. Mas todos buscam se organizar institucionalmente para trabalhar com o tema. A Bolívia, por exemplo, criou um vice-Ministério que aborda Meio Ambiente, Biodiversidade e Mudanças Climáticas. Pode-se dizer que o Brasil está um pouco mais avançado, após ter sancionado a Política Nacional sobre Mudanças do Clima. O Peru alterou, em 2009, a Política Nacional de Meio Ambiente e previu especificamente algumas questões relacionadas às alterações do clima. O Equador, em 2008, adotou uma nova Constituição na qual dedica parte considerável às questões ambientais, estabelecendo algumas previsões específicas sobre alterações climáticas.
Ao elevar o tema a nível constitucional, o Equador deu um grande salto para combater as alterações do clima. Como esta abordagem pode ajudar o país a desenvolver ações de adaptação e mitigação?
Tratar mudanças climáticas com base na Constituição é o arcabouço jurídico mais importante que se pode ter. Este fundamento não diz exatamente o que fazer, mas é a melhor base legal. Por exemplo, o artigo 416 da Constituição equatoriana determina que “o Estado adotará medidas adequadas e transversais para mitigação das mudanças climáticas mediante a limitação das emissões de gases de efeito estufa, do desmatamento e da poluição atmosférica. Tomará medidas para conservação das florestas, da vegetação e protegerá a população de risco”. Neste artigo, se estabelece o mandamento genérico de que devem ser reduzidos as emissões, a poluição atmosférica e o desmatamento. Já as ações para se atingir este objetivo vão ser determinadas a partir da regulamentação de outras normas, que hierarquicamente estão abaixo da Constituição, como por exemplo, os decretos. Entretanto, ter o fundamento na Constituição evita qualquer questionamento sobre a validade e a correção dessas diretrizes.
Você mencionou que o Peru alterou a legislação ambiental. Quais foram as principais modificações realizadas?
Ao modificar a política nacional do meio ambiente em 2009, o governo peruano incluiu expressamente a adaptação da sociedade às mudanças climáticas em seus objetivos da política, além de estabelecer medidas de mitigação orientadas ao desenvolvimento sustentável. Houve também alterações nas diretrizes de ordenamento territorial. Ou seja, a nova lei prevê a incorporação, ainda nos processos de planejamento, de uma análise do risco natural e antrópico dos territórios a serem utilizados. Esta ação tem um impacto bastante importante na prevenção de desastres, pois estes estudos orientam a ocupação do solo. Ou seja, identificar os pontos de alagamento e as áreas vulneráveis a deslizamento de terra, entre outros, em tese impediria a ocupação de regiões suscetíveis a acidentes e, dessa maneira, preveniria a ocorrência de desastres.
No Brasil, a Política Nacional de Mudanças Climáticas faz uma referência genérica à necessidade de identificação de vulnerabilidades e da adoção de medidas de adaptação. No entanto, não faz nenhuma vinculação específica com o planejamento territorial. Mas vale destacar que alguns Estados brasileiros apresentam regras mais específicas no que se refere a planejamento da ocupação dos territórios, como São Paulo.
A Venezuela tem o crescimento baseado na extração de combustíveis fósseis. Esta situação interfere diretamente no posicionamento do país frente às ações de combate as alterações climáticas?
Esta é uma variável importante no posicionamento do país. O que chama a atenção é o fato de a Venezuela ser único país amazônico contrário à adoção de uma política de biocombustíveis (enquanto no Brasil, por exemplo, este tipo de programa é um carro-chefe). Segundo o governo venezuelano, essa posição está baseada, especialmente, nos riscos que a adoção dos biocombustíveis poderia trazer à segurança alimentar, uma vez que poderia ocorrer a substituição de plantios hoje destinados à alimentação pelo cultivo de cana, soja ou outros voltados à produção desses combustíveis. Eles alegam que a mudança poderia não só reduzir a quantidade de alimentos produzidos, como também ocasionar o encarecimento desses produtos.
Como a questão climática é abordada no Bolívia? A realização de conferências, como, por exemplo, a da Mãe Terra, demonstra que o país é avançado?
A pressão social boliviana pode ser observada a partir da organização política do país para tratar o tema. A Bolívia já conta com estrutura administrativa dedicada a tratar de mudanças climáticas, trata-se do vice-Ministério de Meio Ambiente, Biodiversidade e Mudanças Climáticas, o qual possui competência para desenvolver e executar o Plano Nacional de Mudanças Climáticas. Mas a pesquisa realizada pelo Projeto Direito e Mudanças Climáticas indicou a existência de lacunas normativas relacionadas à eficiência energética e às energias renováveis no país.
E a Colômbia, apresenta alguma particularidade para trabalhar com as alterações climáticas?
O governo colombiano iniciou um processo para reconfigurar a legislação com base nos critérios de adaptação e mitigação. O Ministério do Meio Ambiente, Habitação e Desenvolvimento Territorial é responsável por coordenar os esforços das políticas nacionais e internacionais voltadas a mitigar e prevenir os efeitos da mudanças climáticas na Colômbia. Além do Ministério, as agências de aplicação da lei territorial, distrital e municipal também são capazes de gerar ferramentas de mitigação e adaptação a este fenômeno, dentro de seus limites territoriais e de acordo com as diretrizes estabelecidas pela política nacional. Mas os instrumentos de regulamentação colombianos “sofrem” de uma certa timidez. Todavia, é interessante notar que as questões relacionadas com a mudança do clima no país a cada dia se tornam mais importantes entre a sociedade. Neste processo de conscientização sobre o fenômeno, o que se espera é um esforço institucional mais intenso para tomar as medidas adequadas para enfrentar o problema a partir de uma prevenção abrangente e participativa.
Em viagem ao Peru, em junho deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu a construção de um discurso único dos países amazônicos, para ser apresentado na próxima reunião de cúpula sobre o combate ao aquecimento global (COP 16). Qual a sua opinião sobre esta proposta?
Esta posição do presidente brasileiro é bastante importante. As diferenças entre os países existem, mas a maior parte deles compartilha a Floresta Amazônica, que exerce um importante papel na regulação do clima da região. Este bioma influencia inclusive a esfera econômica. Certamente uma estratégia conjunta na COP 16 [a ser realizada entre novembro em dezembro deste ano no México], só vem a reforçar a posição desses países, e quem sabe até ajude a alavancar as negociações. Embora desconheça qualquer iniciativa concreta a respeito da articulação dessa estratégia, penso que os possíveis empecilhos em decorrência das diferenças entre os países podem ser negociados. Em todo o caso, acredito que o Tratado de Cooperação Amazônica poderia ser um instrumento facilitador da construção dessa posição única.
* Publicado originalmente no site Andi – Mudanças Climáticas.