Trípoli, Síria, 24/8/2012 – Pouco antes da queda de Muammar Gadafi no ano passado, a palestina Huda e sua família foram expulsas de casa na capital da Líbia. “Foi no final de agosto, e havia muita violência. Não tinha governo. Meu marido sofreu um ataque cardíaco e nos assustamos”, contou, entre lágrimas, esta mulher de idade média, vestida totalmente de preto. “Imploramos que nos dessem mais tempo para encontrar outro lugar, mas os filhos do proprietário vieram e nos insultaram. Deixamos nossa casa com todos os móveis. Fomos expulsos violentamente”, contou Huda. O governo de Gadafi (1969-2011) havia confiscado a casa de seu proprietário original sob a Lei de Habitação 4, de 1978, pela qual cada família podia possuir apenas uma residência.
Quando começou o levante contra Gadafi no ano passado, o proprietário da casa de Huda exigiu sua devolução. Originários de Acca, na Palestina, os pais de Huda fugiram da violência no sul do Líbano em 1948. Três décadas depois, ela e seu marido escaparam de outra guerra brutal. Mudaram-se para a Líbia com documentos de viagem libaneses, e encontraram trabalho e uma moradia. Depois de terem pago aluguel ao governo por mais de 30 anos, Huda teve que começar a pagar ao proprietário original um aluguel cinco vezes maior. Mas, quando este morreu, seus filhos vieram reclamar a herança.
Desde o conflito armado, as disputas de propriedade parecem ter se convertido na principal ameaça à segurança nacional, e afetou muito a comunidade de palestinos refugiados. O problema se agrava com a contínua chegada de palestinos vindos da Síria. Estima-se que já há entre 45 mil e 70 mil palestinos na Líbia. É difícil precisar os números, sobretudo depois da revolução do ano passado, durante a qual muitos fugiram do país ou foram expulsos.
Como país signatário do Protocolo de Casablanca, de 1965, que protege os direitos dos palestinos nos Estados árabes, a Líbia recebeu uma grande quantidade destes, procedentes de toda a região, sobretudo de Gaza e do Líbano. Muitos ocuparam postos qualificados na indústria do petróleo e do gás, e receberam subsídios para moradia, educação e saúde. Embora Gadafi tenha defendido a causa palestina e inclusive recrutado combatentes dessa origem para sua guerra com o Chade, essa comunidade também sofreu expulsões em massa sob seu regime na década de 1990.
O regime de Gadafi considerou os Acordos de Oslo, de 1993, uma vergonha e algo desastroso para a nação árabe. “Já que os líderes palestinos afirmam ter uma pátria e um passaporte, que os 30 mil palestinos na Líbia regressem à sua pátria e vejamos se os israelenses permitirão. Assim o mundo saberá que a paz que se prega não passa de traição e conspiração”, disse Gadafi na época. Muitos palestinos que conseguiram regressar à Líbia depois desta expulsão descobriram que haviam perdido sua relativa segurança de moradia subsidiada e empregos estáveis, o que exacerbou sua vulnerabilidade.
Elena Fiddian-Qasmiyeh, pesquisadora do Centro de Estudos sobre Refugiados, da Universidade de Oxford, disse que quando começou a revolução em 2011 muitos palestinos se assustaram e optaram por permanecerem neutros. “Alguns com os quais conversei estavam sendo atacados por forças partidárias do regime por não participarem de atividades armadas, ou eram atacados pelo movimento rebelde que os associavam com o governo”, afirmou. A comunidade Palestina na Líbia ainda tem a dura recordação das expulsões de Gadafi. Fiddian-Qasmiyeh afirmou que “muitos queriam ficar e não perder suas casas nem as oportunidades econômicas, que esperavam manter tão logo a situação se acalmasse”.
O novo embaixador palestino na Líbia, Al Mutawakel Taha, informou que metade dos palestinos na Líbia têm documentos vencidos por medo de procurar as autoridades. “O governo líbio logo solicitará autorização de residência para os palestinos. Com novas leis, as coisas mudarão, socialmente, economicamente e legalmente”, afirmou. O embaixador previu que as novas políticas de livre mercado do governo jogarão por terra os subsídios alimentícios para os palestinos e restringirão os benefícios para educação, saúde e moradia.
Uma provável vítima será Anwar, de 67 anos, um palestinos que chegou à Líbia procedente do sul do Líbano em 1972. Ele acaba de ser expulso de sua casa pelo proprietário original. “Não há lei que me proteja”, disse. “Eu sabia que se resistisse haveria problemas, porque meus vizinhos foram retirados à força”, acrescentou. Agora, Anwar tenta manter sua mulher e seus filhos, com os quais vive em um apartamento de aluguel alto. Quatro de seus filhos têm deficiências genéticas e são completamente dependentes do sistema de saúde público e de seus pais.
“Provavelmente, essas expulsões foram ilegais”, disse o advogado de direitos humanos Salah Marghani. “Mas o sistema judicial quase entrou em colapso nos últimos meses. Se alguém for expulso à força e for à justiça, é pouco provável que encontre um juiz”, afirmou. Shakr Mohamed Dakhil preside a Associação Líbia Defensora de Proprietários. O grupo é integrado pelos donos das casas confiscadas pelo regime de Gadafi. Dakhil admitiu a dificuldade de evitar que alguns proprietários recorressem à violência para recuperar suas casas. “O embaixador palestino estava muito preocupado. Realizamos um pequeno protesto diante da embaixada há cerca de quatro meses por todas as propriedades ocupadas por palestinos. O protesto foi uma advertência”, ressaltou. Envolverde/IPS