Fracasso da fusão com Carrefour, estimulada pelo BNDES, convida a refletir sobre papel do Estado na formação dos monopólios.
A recente disputa entre Abílio Diniz e o grupo francês Casino pelo controle dos supermercados Pão de Açúcar torna oportuna uma discussão sobre a relação entre Estado e capital. Após declarar apoio à fusão entre Pão de Acúcar e Carrefour por meio do BNDES, o governo voltou atrás tendo em vista o conflito legal entre Abílio Diniz e o grupo Casino. Se a operação tivesse se materializado, o Estado teria promovido a concentração de capital no varejo supermercadista ao invés de defender a concorrência. Embora isto contraste com o discurso de muitos empresários, que defendem a liberdade de mercado e a não intervenção estatal, a intenção inicial do governo exemplifica muito bem a essência do capitalismo: o antimercado.
Segundo o historiador francês Fernand Braudel (e a escola de pensamento social conhecida como Análise dos Sistemas-Mundo), capitalismo não é sinônimo de economia de mercado, é sim um sistema social em que a acumulação incessante de capital é promovida por meio da distorção de relações de troca com uso do poder estatal. Historicamente, o Estado tem empregado instrumentos políticos para criar posições monopolísticas que proporcionam lucros extraordinários ao capital. Subsídios, crédito favorecido, protecionismo e, até mesmo, a guerra. Em troca, elites estatais têm acesso a parte dessas rendas extraordinárias, por exemplo, com a tributação.
Sob o capitalismo, o livre mercado é muito mais uma construção ideológica do que uma realidade. No mais das vezes, significa liberalizar a atividade econômica dos que podem menos e manter regulações que favorecem os que podem mais. Quem lê Adam Smith com cuidado, como fez Giovanni Arrighi em Adam Smith em Pequim, sabe que deveria ser o contrário: eliminar regulações que protegem os grandes detentores de capital e fazê-los competir em benefício da maioria e, por outro lado, expor os setores mais frágeis da população à lógica do mercado apenas gradualmente e mantendo níveis mínimos de proteção que não exponham a susbistência completamente às vicissitudes do mercado.
É isto que estaria fazendo o governo brasileiro em relação ao Pão de Açúcar? Não. Fosse o Pão de Açúcar uma empresa de exportação, justificar-se-ia o Estado apoiar sua centralização de capital. Neste caso, o foco no mercado mundial poderia demandar maior escala de produção e o ônus da concentração de mercado recairia sobre consumidores de outros países, que pagariam mais caro por exportações brasileiras. Ocorre que o Pão de Açúcar não é a Vale, é uma empresa que vende alimentos para as famílias brasileiras. Não é desejável que menos de meia dúzia de empresas controlem o que e a que preço comem os brasileiros. Foi por esta razão que o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) recomendou tantas restrições à fusão entre Sadia e Perdigão.
Nos últimos anos, o Estado brasileiro tem sido eficaz no estímulo a grandes grupos empresariais nacionais, que emergem como as primeiras multinacionais brasileiras. No entanto, quando se trata de empresas atendendo o mercado doméstico, fica muito a desejar a defesa da concorrência. As famílias brasileiras estariam muito melhor se não pagassem tão caro pelo crédito bancário (decorrente de altos spreads proporcionados pela oligopolização dos bancos), ou pelo minuto falado no celular (causado pela baixa concorrência entre empresas de telefonia). Só faltava isso acontecer também com o pão e o açúcar.
* Felipe Amin Filomeno é sociólogo e economista, doutorando em Sociologia pela Johns Hopkins University, com apoio da Capes/Fulbright. Tem artigos publicados nas revistas Economia & Sociedade, História Econômica & História de Empresas, e da Sociedade Brasileira de Economia Política. Mantém um blog em http://felipeaminfilomeno.wordpress.com e é colaborador do site Outras Palavras.
** Publicado originalmente no site Outras Palavras.