“Nós não sabemos alfabetizar nossas crianças.” Esta é a conclusão da psicóloga Marilene Proença, docente da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Psicologia Escolar e Educacional. Segundo ela, recentes avaliações revelam que a má qualidade do ensino é a responsável pelo fracasso escolar e não os próprios alunos.
Partindo da noção de que o processo de escolarização engloba diversos fatores – entre eles políticas públicas da educação, condições de trabalho do professor, expectativas de aprendizagem, currículo escolar, métodos de trabalho e até a forma de gestão das instituições –, Proença diz ser contra a medicalização de crianças com dificuldade na aprendizagem.
Para ela, é preciso pensar em todas as situações que, conjuntamente, vão construindo um quadro bastante ruim do trabalho realizado nas escolas. “A ideia de que uma criança que tem dificuldade de atenção na escola vai tomar ritalina e vai conseguir ler e escrever é um absurdo. É desconhecer o processo de alfabetização. Prestar atenção é apenas uma dimensão desse processo, mas não é a única e nem a mais importante”, ressalta.
Portal Aprendiz – Como a senhora definiria psicologia escolar?
Marilene Proença – A psicologia escolar e educacional é uma das áreas de atuação e pesquisa da psicologia, que busca compreender os fenômenos que se passam no campo da escolarização e da educação em geral. Ou seja, quais contribuições a psicologia, enquanto ciência, pode oferecer para a educação — que é um campo vasto formado por instituições de ensino regular, por aquelas ligadas à infância e adolescência, pela assistência social, entre outros atores.
Portal Aprendiz – Como esse campo da psicologia entende o fracasso escolar hoje?
Proença – Entendemos o fracasso escolar como um produto do processo de escolarização. Hoje, o processo de escolarização é multideterminado, vai do campo das políticas públicas da educação, das condições de trabalho do professor, das expectativas que se tem em relação aos alunos, ao próprio currículo que as escolas adotam, aos métodos de trabalho, à forma de gestão das instituições.
Hoje nós sabemos que todas essas dimensões constituem o que chamamos de processo de escolarização e, portanto, a criança que não aprende, que não tem atenção suficiente, que não lê, não escreve, é uma criança produto de um processo que, em alguma dessas dimensões, está falhando.
Portal Aprendiz – Dificuldade, distúrbios ou transtornos de aprendizagem? Qual a nomenclatura exata para esse problema educacional?
Proença – Dentro do pensamento educacional brasileiro, as dificuldades de aprendizagem escolar sempre foram atribuídas às crianças. Ou se tratava de falta de inteligência, ou de algum problema psicológico e afetivo da chamada “criança problema”, ou a algum aspecto do seu organismo, daí a ideia de distúrbio e transtorno, ou, ainda, à classe social à qual essa criança era proveniente, então ela era denominada criança carente ou carente cultural.
Nestas dimensões, em nenhum momento, se questiona como é a escola, qual é a qualidade do ensino, como ela está constituída para que uma criança possa se desenvolver no seu interior. No momento em que se busca na criança a causa de ela não aprender, foca-se em apenas um elemento do processo educativo, deixando de lado todos os outros que compõem a vida escolar.
Quando chamamos a atenção para o conceito de fracasso escolar é porque, na verdade, essa criança é produto de um processo de escolarização que precisa ser reformulado para que o aprendizado se dê da melhor maneira possível. É intervindo, transformando o espaço educacional da criança, que nós vamos de fato ter uma escola que traga o melhor do conhecimento, uma escola que possibilite o interesse dos alunos.
A mudança de conceito vai ocorrer por volta dos anos 1980, com as discussões sobre a qualidade da escola, que vieram da sociologia da educação e da antropologia. É quando vai se repensar o papel da escola, discutir que ela não está respondendo às necessidades e anseios da sociedade e, portanto, definir que era preciso melhorar a sua qualidade para depois entender melhor o processo de aprendizagem.
Portal Aprendiz – As avaliações têm demonstrado uma defasagem significativa no aprendizado de crianças ao final do ciclo de alfabetização. Qual o impacto dessas provas na percepção do fracasso escolar?
Proença – O que essas avaliações procuram mostrar é como está se dando qualitativamente o ensino. O Brasil praticamente universalizou o acesso à escola. Cerca de 97% das crianças em idade escolar estão estudando hoje. Agora, essas crianças dentro das escolas estão realmente aprendendo a ler, escrever, a fazer cálculos ou se apropriar das noções de ciências?
Todas as provas que vêm sendo aplicadas estão confirmando uma situação de precaridade na qualidade da apropriação do conhecimento pelas crianças. Segundo elas, pelo menos metade das crianças no Brasil não consegue ler e interpretar um texto simples. Este é um processo que se dá na alfabetização. E uma alfabetização de qualidade permite que uma criança de quarta série tenha atingido esse nível de domínio da leitura e da escrita.
Podemos até criticar os detalhes dessas avaliações, a existência de uma certa homogeneidade das questões, mas sem dúvida elas chamam atenção para o fato de que há uma flexibilização muito grande ainda no processo de alfabetização. E já se sabe que uma criança que não domina leitura e escrita nos primeiros anos vai carregar essa dificuldade para o resto da vida.
Essas avaliações têm mostrado o nosso fracasso no processo de alfabetização. Nós não sabemos alfabetizar nossas crianças. Não chegamos a um nível que garanta, para o início da escolarização, o mínimo esperado na qualificação da leitura e da escrita. Este é o retrato de uma dura realidade, porque há investimento de várias naturezas nessa etapa da educação, houve inclusive a antecipação da escolaridade, mas a política que vai trabalhar com alfabetização ainda está muito aquém do esperado de uma escola de qualidade.
Portal Aprendiz – A senhora acredita que essas avaliações podem corroborar a tese de que o problema reside exclusivamente nos alunos?
Proença – Se forem interpretadas dessa forma, sim. Se o dado for interpretado como expressão de como o sistema não está dando conta do processo de alfabetização, ele vai contribuir para a visão que citei anteriormente. Agora, se ele for interpretado como “está vendo como as nossas crianças têm problema?”, vamos voltar às explicações que a psicologia escolar vem questionando há trinta anos.
Portal Aprendiz – Diante desse quadro, como a senhora localiza o professor?
Proença – O professor na literatura educacional tem sido muito culpabilizado pelo fato de as crianças não aprenderem na escola. Se, de um lado, a criança tem sido a protagonista de grande parte da justificativa para o não aprender, de outro, o professor tem sido considerado mal formado, mal preparado, sem compromisso, ou seja, tem sofrido uma desqualificação e uma desvalorização muito grande do seu trabalho.
Quando se atribui somente a ele a dificuldade no processo de aprendizagem, estamos deixando de considerar todas as condições de trabalho nas quais este professor está inserido. O professor que não tem material, que não tem discussão em grupo sobre o seu trabalho, que não tem acompanhamento, que está em uma escola sem infraestrutura adequada, onde trabalha muitas horas em sala e tem pouco tempo para corrigir o que é feito nas aulas, fica muito difícil desempenhar com qualidade o seu próprio trabalho.
É preciso pensar em todas as situações que, conjuntamente, vão construindo um quadro bastante ruim do trabalho realizado nas escolas. Não que o professor não tenha responsabilidades sobre o seu trabalho. É evidente que tem. Mas ele não pode ser responsabilizado da forma como vem sendo na literatura e na visão social em geral.
Portal Aprendiz – Como a senhora avalia a medicalização dos alunos com dificuldades na aprendizagem?
Proença – O retorno à medicalização – porque isso já existiu nos anos 1930, depois nos anos 1960 – ocorre exatamente no momento em que os índices demonstram que a escola está com muitas dificuldades de dar conta do processo de alfabetização. Ou seja, busca-se novamente entender por que isso vem ocorrendo e, nessa tentativa, volta-se à explicação de que as crianças possuem algum problema orgânico que as impedem de aprender. Isto ocorre junto ao advento das drogas, da nova geração de medicamentos, que vêm para tentar justificar o funcionamento do cérebro pelo campo da biologia.
Segundo essa visão, tudo o que se passa na vida humana acontece porque o cérebro funciona de um jeito e, se nós interferirmos, ele vai funcionar de outro. Reduz-se a dimensão humana a uma dimensão orgânica e biológica. Não que nós não tenhamos essa dimensão, mas somos seres que temos cultura, sociedade, psiquismo, ou seja, muitas outras dimensões vão constituir a humanidade.
A retomada das explicações organicistas, somada ao desenvolvimento de medicamentos na área da psiquiatria e à ideia de que as pessoas que não conseguem fazer determinadas coisas possuem algum tipo de transtorno, chegou à educação. A ideia de que uma criança que tem dificuldade de atenção na escola vai tomar ritalina e vai conseguir ler e escrever é um absurdo. É desconhecer o processo de alfabetização. Prestar atenção é apenas uma dimensão desse processo, mas não é a única e nem a mais importante.
A mais importante é que aquilo que ela está aprendendo faça sentido, tenha significado para a sua vida. É isto que vai fazer com que ela se motive a aprender, que memorize, que fique atenta, que tenha curiosidade, que tenha vontade de ler um livro, que tenha interesse pelo material escolar. São muitos os fatores que vão constituir a possibilidade de ler e escrever.
Portal Aprendiz – Quais as consequências pedagógicas e, inclusive, sociais dessa interpretação a respeito do processo de ensino-aprendizagem?
Proença – Essa visão acaba construindo na criança uma subjetividade, uma maneira de encarar as questões, que são sempre do controle externo a ela. Muitas crianças pedem o remédio aos pais, porque consideram que só vão aprender se aquilo fizer efeito no organismo deles. Constitui-se, então, uma muleta para a criança, ao invés de ajudá-la a encontrar estratégias para enfrentar os desafios que se apresentarão ao longo da vida. É como se ela tivesse uma doença – que é não ler e não escrever – e tivesse que tomar o medicamento para ficar boa.
Isso gera consequências gravíssimas do ponto de vista do seu desenvolvimento. É uma criança que está aprendendo a viver, a se relacionar, a decidir, a responder aos desafios da vida, e hoje ela aprende que é uma droga que vai ajudá-la a fazer tudo isso. Esta abordagem vai de encontro ao que vem sendo defendido na psicologia, já que apostamos exatamente no ser humano para resolver suas questões.
Portal Aprendiz – Mas é uma interpretação que tem pautado até política pública. Existem Projetos de Lei e associações de proteção aos indivíduos portadores desses supostos “transtornos”.
Proença – A presença maciça dos transtornos na educação tem cerca de oito anos. O primeiro Projeto de Lei é de 2003 e prevê um programa de diagnóstico e tratamento para Dislexia e Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperativismo (TDAH).
Todas as associações que defendem a existência desses distúrbios são mantidas por laboratórios farmacêuticos. Quando existe esse tipo de relação, quando há interesse em vender remédios, como podemos confiar que esses pretensos diagnósticos estão sendo feitos para melhorar a vida das crianças? E como um remédio que tem anfetamina, ou seja, que tem a mesma origem que a cocaína, com efeitos colaterais gravíssimos pode ser algo que ajude essa criança a melhorar sua vida? É um contrassenso muito grande.
A psicologia, enquanto área do conhecimento, tem trazido ao longo de sua trajetória a voz da criança. A criança fala, pensa e pode, inclusive, dizer como se sente ao tomar o remédio que um adulto diz que é bom para ela. Muitas mães nos contam que o filho não é mais criança depois que começou a tomar ritalina. Elas dizem que não brinca, não quer jogar bola, fica quieto a tarde toda. Ou seja, a criança deixa de fazer o que faria porque está dopada. Achar que isto é bom para a criança é de um autoritarismo e intransigência do adulto muito grande.
A indústria farmacêutica é a segunda maior do mundo, perdendo apenas para a indústria de armas. Por que outras doenças que estão postas há séculos ainda não têm drogas para tratamento, mas se produz medicamentos para o psiquismo humano aos quilos? Há uma inversão de valores.
O HIV, por exemplo, precisou de um movimento social forte que pressionasse a indústria farmacêutica a investir em pesquisa na área, a ponto de termos hoje drogas importantes que permitem que essas pessoas vivam com qualidade.
No caso dos gays, foi preciso um movimento também muito forte para retirar do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM, em inglês), o livro de psiquiatria norte-americano, que homossexualismo era um transtorno e precisava ser tratado.
Esses exemplos mostram o quanto somos reféns de uma série de explicações de caráter ideológico, de interesse de mercado, que colocam em pauta necessidades que não são legítimas, e deixam de tratar necessidades legítimas no campo social.
Portal Aprendiz – Em relação ao consumo de ritalina (cloridrato de metilfenidato) no Brasil e em algumas cidades brasileiras, quais os dados mais recentes que a senhora possui?
Proença – Dados do Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de Medicamentos (Idum), que medem a compra de metilfenidato em farmácias no Brasil, mostram um salto de 71 mil caixas, em 2000, para dois milhões de caixas, em 2010. Esses valores não incluem a quantidade de metilfenidato comprada pelo serviço público de saúde e nem aqueles que são manipulados em farmácia.
Em relação a São Paulo, os números da Secretaria Municipal de Saúde apontam a compra de 110.300 comprimidos de ritalina em 2009. Em 2010, esse número sobe para 180 mil e já sabemos que, até maio de 2011, foram comprados 50 mil comprimidos para serem distribuídos na rede do Sistema Único de Saúde (SUS).
* Publicado originalmente no Portal Aprendiz.