Paraísos fiscais: “a sonegação é um descompromisso com uma sociedade mais justa”

“Os paraísos fiscais estimulam o crime ou – no mínimo – a dissimulação de empresas e pessoas ricas. Estimulam a sonegação de impostos e também são refúgios para o dinheiro de origem ilegal”, avalia assessor político do Inesc, Lucídio Bicalho.

Capitais que deveriam financiar o Estado de bem-estar social são desviados para paraísos fiscais localizados em aproximadamente 60 países diferentes. O fluxo de capital financeiro desviado, segundo Lucídio Bicalho, “é muito maior do que a economia de muitos países” e, em um período de incertezas e crises econômicas, os paraísos fiscais “fragilizam o controle sobre o sistema financeiro mundial”.

Somente o Brasil, entre os anos de 2007 e 2009, desviou cerca de “US$ 260 bilhões para as Ilhas Cayman, Ihas Virgens Britânicas e Bahamas”, diz Lucídio Bicalho à IHU On-Line. “Quando recursos fogem para países que não tributam a renda, de um lado, isso concentra a renda e, de outro, deixam de contribuir no financiamento de políticas sociais, o que contribui para a manutenção da pobreza e injustiça no mundo”, explica o cientista político.

A distorção na distribuição da carga tributária entre ricos e pobres, segundo Bicalho, contribui para a manutenção de paraísos fiscais e para agravar a situação de injustiça fiscal. “O mais justo seria ter mais imposto sobre a renda e o patrimônio e, paralelamente, diminuir os tributos indiretos. O sistema tributário deveria ter um imposto de renda com um maior número de faixas e precisaria tributar diferentemente quem ganha mais”, assinala.

Lucídio Bicalho é graduado e mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, é assessor político do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a proposta da campanha “Fim dos Paraísos Fiscais”?

Lucídio Bicalho – A campanha está convidando pessoas de diferentes países a entrar no site www.fimaosparaisosfiscais.org e enviar uma mensagem aos seus líderes para exigir justiça fiscal no mundo. As principais reivindicações dessa articulação internacional são: 1) exigir que governos tomem medidas efetivas para obrigar empresas a declararem seus lucros reais e, assim, não sonegarem impostos; 2) exigir que os líderes mundiais, reunidos no G-20 (Grupo das 20 maiores economias do planeta) tomem medidas efetivas para acabar com o sigilo das atividades nos paraísos fiscais.

IHU On-Line – Como surgiram os paraísos fiscais?

Lucídio Bicalho – Talvez a Suíça seja um dos primeiros exemplos do desenho institucional básico, isso ainda antes da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A arquitetura dos paraísos fiscais é uma tentativa de detentores de riqueza (bancos, empresas, famílias, etc.) de fugirem da regulação do Estado sobre as atividades econômicas e capitalistas. Sua multiplicação no mundo acorre na segunda metade do Século 20.

IHU On-Line – Como funcionam e quais são os principais paraísos fiscais do mundo?

Lucídio Bicalho – O governo brasileiro considera como paraísos fiscais “países ou dependências que não tributam a renda ou que a tributam à alíquota inferior a 20%, ou, ainda, cuja legislação interna não permita acesso a informações relativas à composição societária de pessoas jurídicas ou à sua titularidade”.  Ou seja, são territórios ou centros financeiros que se valem da legislação local para isentar os depositantes de pagarem tributação e, ainda, manter o sigilo nominal dessas pessoas e empresas. Atualmente, a Receita Federal do Brasil classifica quase 60 países nessa modalidade. O conjunto deles é pernicioso. Mas, citaria alguns: Ilhas Cayman, Bahamas, Ilhas Virgens Britânicas e Bermudas.

IHU On-Line – De que maneira o desvio de capital para paraísos fiscais impacta nas políticas públicas sociais?

Lucídio Bicalho – Não existe uma sociedade justa, igualitária e fraterna sem que o Estado forneça políticas públicas de qualidade (saúde, educação, segurança, assistência social, etc.), inclusive, políticas de distribuição de renda. Só vamos viver em um país digno e ter orgulho dele quando os direitos estiverem garantidos e a pobreza erradicada. E são os tributos que devem financiar esse Estado de bem-estar social. Esses tributos devem ser coletados de forma proporcional à renda das pessoas, sendo que os mais ricos devem pagar proporcionalmente mais. Dessa forma, a sociedade sai ganhando no conjunto, como uma sociedade solidária de fato. Ou seja, quando recursos fogem para países que não tributam a renda, de um lado, isso concentra a renda e, de outro, deixam de contribuir no financiamento de políticas sociais, o que contribui para a manutenção da pobreza e injustiça no mundo.

IHU On-Line – É possível estimar quanto dinheiro o Brasil desvia atualmente para paraísos fiscais?

Lucídio Bicalho – Vou citar o que foi enviado para três paraísos fiscais. Analisando dados do Banco Central, chegamos a uma soma de US$ 260 bilhões para as Ilhas Cayman, Ihas Virgens Britânicas e Bahamas, de 2007 a 2009. Este dinheiro é enviado na forma de Investimento Brasileiro Direto (IBD).

IHU On-Line – Qual é a participação do Brasil em paraísos fiscais?

Lucídio Bicalho – Não tenho essa estatística. Acredito que é proporcional à nossa participação na distribuição de riqueza no mundo, já que pessoas e empresas de todos os países se utilizam dos paraísos fiscais. O fim do sigilo das contas em paraísos fiscais ajudaria a ter algum estudo nesse sentido.

IHU On-Line – Os paraísos fiscais contribuem de alguma maneira para o agravamento de crises internacionais?

Lucídio Bicalho – Sim. Hoje, o fluxo de capital financeiro é cada vez maior. É muito maior do que a economia de muitos países. Em situação de incertezas na economia mundial, os especuladores movimentam vultosos fluxos financeiros, deixando as economias de países descobertas de proteção cambial e provocando crises em suas contas externas. Os paraísos fiscais são intermediadores dessa especulação. Além disso, fragilizam o controle sobre o sistema financeiro mundial.

IHU On-Line – O que dificulta a transparência em relação aos investimentos feitos em paraísos fiscais?

Lucídio Bicalho – São territórios soberanos com uma legislação própria. Apenas a diplomacia, a pressão política ou sanção internacional poderia viabilizar a assinatura de tratados e acordos estabelecendo um sistema de troca de informações.

IHU On-Line – Qual é a situação econômica e social de países que são, atualmente, paraísos fiscais? Quais são as vantagens para um país se transformar em paraíso fiscal?

Lucídio Bicalho – A maioria são economias pequenas e territórios pequenos. Porque a economia real não é significativa, usam o artifício dos paraísos fiscais.

IHU On-Line – É possível terminar com o sigilo fiscal dos investidores? O que é preciso para coibir a proliferação dos paraísos fiscais?

Lucídio Bicalho – É possível, desde que os líderes mundiais tenham essa agenda política como um objetivo verdadeiro e tomem medidas efetivas.

IHU On-Line – O G-20 tem interesse em acabar com o sigilo fiscal dos investidores dos paraísos fiscais?

Lucídio Bicalho – Principalmente depois da crise financeira de 2008-2009, o G-20 tem apoiado politicamente a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para coordenar negociações com os países no sentido de reformar suas regras. Tratados e acordos têm sido assinados no âmbito da OCDE. Temos de avaliar o impacto e a efetividade dessa iniciativa.

IHU On-Line – Qual o impacto dos paraísos fiscais na economia real?

Lucídio Bicalho – Os paraísos fiscais estimulam o crime ou – no mínimo – a dissimulação de empresas e pessoas ricas. Estimulam a sonegação de impostos e também são refúgios para o dinheiro de origem ilegal (corrupção, tráfico de trocas, terrorismo, etc.). Então, os paraísos fiscais trazem um malefício para o mundo que é incalculável. Sabemos que o mundo seria melhor sem esse tipo de desenho institucional.

IHU On-Line – A carga tributária brasileira favorece o desvio de dinheiro para paraísos fiscais?

Lucídio Bicalho – A sonegação é motivada por um desvio ético. A sonegação é um descompromisso com uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária. Todos sairiam ganhando se os tributos fossem direcionados para a realização dos direitos das pessoas. É claro que não há ingenuidade. Também que é preciso combater a corrupção, o desperdício e as distorções com relação às prioridades do gasto no âmbito do Estado. Se os tributos são utilizados indevidamente, fica a sensação de que nosso dinheiro não retorna na forma de políticas públicas de qualidade.

IHU On-Line – Qual é o maior problema da tributação brasileira? O que dificulta, no país, a justiça fiscal?

Lucídio Bicalho – A distorção está na distribuição da carga tributária entre ricos e pobres. Tem muita gente rica que paga pouco proporcionalmente à sua renda. E tem famílias pobres sobrecarregadas se for considerada a sua capacidade de pagamento. A isso se dá o nome de injustiça fiscal.

IHU On-Line – Como o Estado deveria atuar para garantir um sistema tributário mais justo?

Lucídio Bicalho – Isso ocorre porque temos um sistema com muitos tributos indiretos (ICMS, IPI, ISS, entre outros) recaindo sobre o consumo. O mais justo seria ter mais imposto sobre a renda e o patrimônio e paralelamente diminuir os tributos indiretos. O sistema tributário deveria ter um imposto de renda com um maior número de faixas e precisaria tributar quem ganha mais. Seria preciso tributar mais os grandes latifúndios, as heranças e as grandes fortunas. O que temos hoje são os bancos, as grandes propriedades e as grandes fortunas pagando poucos tributos proporcionalmente ao que poderiam pagar.

* Publicado originalmente no site IHU On-Line.