Uma jornalista, que denunciava pela internet a ação do cartel de drogas conhecido como Los Zetas, foi morta e decapitada na cidade de Nuevo Laredo, México, perto da fronteira com o Texas. María Elizabeth Macías era editora-chefe do jornal Primera Hora e usava as redes sociais para denunciar crimes do narcotráfico na região de fronteira.
O cenário é o mesmo descrito pelo escritor chileno Roberto Bolaño, em sua obra publicada postumamente sob o título de 2666. Bolaño morreu em 2003, e esse livro, publicado em 2007, lhe valeu a fama como escritor capaz de tornar verossímeis as mais absurdas histórias, como a de uma sucessão de brutais assassinatos de mulheres numa comunidade absolutamente indiferente aos crimes.
A polícia encontrou o corpo da jornalista María Elizabeth Macías no gramado de uma praça, na frente do monumento dedicado a Cristóvão Colombo, tendo ao lado um teclado de computador, fones de ouvido, cabos e um megafone. Junto ao monumento, um cartaz assinado pelo cartel. Ela tinha 39 anos de idade.
Forças de ocupação
O cenário, imaginado por um escritor como Bolaño, seria apontado pela crítica literária como exemplo de criatividade. Transplantado para a vida real, deixa no ar algumas questões muito incômodas. Ela é a oitava vítima de narcotraficantes mexicanos neste ano, somente entre jornalistas.
O Comitê para Proteção de Jornalistas e a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), juntamente com a Anistia Internacional, divulgaram nota condenando o crime. E só.
Agora, reflita o leitor atento sobre as proporções dos acontecimentos. Quando alguns governos do continente anunciaram projetos de regulamentação dos negócios de comunicação, a SIP fez um escândalo, promoveu seminários e divulgou manifestos, faltando apenas convocar o Conselho de Segurança da ONU para denunciar o que considera como ameaça à liberdade de imprensa.
Na fronteira do México com os Estados Unidos, traficantes associados a comandantes militares corruptos estabelecem um reino de terror, promovem assassinatos em série e tentam calar a imprensa e até mesmo as manifestações de cidadãos comuns nas redes sociais – isso há mais de dez anos –, e o máximo que faz a entidade representativa da imprensa é “soltar uma nota de protesto”?
O caso não seria para uma reunião de emergência do Conselho de Direitos Humanos da ONU, sem tirar de perspectiva a convocação de forças multinacionais e ocupação da região conflagrada, exatamente como tem sido feito no outro lado do mundo?
Ou o que vale para o Iraque e o Afeganistão não vale para a América?
Buracos abandonados da História
Há notícias de que as forças armadas do México têm promovido ataques a bases de traficantes, mas a situação não mostra sinais de mudança em pelo menos quatro Estados onde as instituições foram corroídas pela ação corruptora do narcotráfico. As notícias esparsas que são publicadas por agências internacionais fazem referência, frequentemente, ao envolvimento de autoridades com o crime organizado.
Roberto Bolaño viveu boa parte de sua vida naquela região. Seu último romance, produzido há uma década, descreve uma sociedade derrotada pelo crime, anestesiada pela impossibilidade da mudança – circunstância que também descreve a vida em muitas comunidades brasileiras submetidas à tirania dos traficantes.
No Rio de Janeiro, onde a estratégia da guerra aberta e ocupação militar tem permitido libertar muitas comunidades do poder do crime, as ações tiveram como ponto de partida uma série de reportagens do jornal O Globo, que mostraram o aspecto político da dominação criminosa.
Publicadas a partir de 2007, essas reportagens demonstraram que as populações submetidas à violência dos narcotraficantes associados a policiais corruptos viviam um estado de terror equivalente àquele que é imposto pelas piores ditaduras.
Na Colômbia, também a ação da imprensa foi fundamental para respaldar e estimular iniciativas que permitiram, não apenas reduzir o domínio dos cartéis, como também levar projetos de desenvolvimento às comunidades antes submetidas aos criminosos.
Uma sociedade que se pretende civilizada não pode permitir a permanência desses buracos perdidos da História em pleno Século 21. Portanto, espera-se das entidades que representam o jornalismo e as empresas jornalísticas que vão muito além de emitir notas de protesto.
Se a SIP e as demais organizações dedicassem ao resgate da cidadania uma parcela apenas da energia que gastam para combater qualquer tentativa de democratizar a comunicação, muitas vidas teriam sido poupadas.
* Publicado originalmente no site Observatório da Imprensa.