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Polêmica sobre ONGs afeta relações entre Egito e Estados Unidos

Cairo, Egito, 12/3/2012 – A polêmica no Egito sobre as organizações não governamentais que recebem apoio do exterior atingiu seu ponto máximo nos últimos dias e levou analistas locais a considerarem uma drástica mudança nas históricas “relações estratégicas” com os Estados Unidos. “Um ano depois da queda de Hosni Mubarak, as relações entre Egito e Estados Unidos chegaram a uma encruzilhada”, disse à IPS o especialista político Tarek Fahmi, da Universidade do Cairo. “A questão dos grupos da sociedade civil apoiados a partir do exterior derivou na primeira crise fundamental entre os dois países em mais de 30 anos”, afirmou.

Na noite do dia 1º, 15 ativistas estrangeiros, entre eles oito norte-americanos, deixaram apressadamente o Cairo com destino aos Estados Unidos, depois que as autoridades judiciais egípcias levantaram, surpreendentemente, a proibição de viajar que pesava sobre eles. Os estrangeiros, entre os quais estava o filho do secretário de Transporte dos Estados Unidos, Ray LaHood, tinham sido acusados de administrar diversas ONGs que operavam no Egito sem autorização oficial.

“O governo dos Estados Unidos forneceu um avião para facilitar a partida e já deixaram o país”, informou na noite do dia 5 a porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Victoria Nuland. Entretanto, acrescentou que isso não resolvia “os temas mais amplos que afetam as ONGs” no Egito. Funcionários da área legal e grupos políticos de todos os setores egípcios criticaram a libertação dos estrangeiros acusados e coincidiram em afirmar que o sistema judicial cedeu à pressão de Washington.

No dia seguinte, mais de 200 manifestantes seguiram da Praça Tahrir até as proximidades da embaixada norte-americana para protestar contra o que consideram interferência estrangeira em assuntos internos egípcios. No dia 3, dezenas de magistrados apresentaram um pedido oficial para que sejam investigadas as autoridades judiciais que permitiram aos estrangeiros abandonar o país. “A libertação dos norte-americanos sacode o sistema judicial egípcio”, dizia a manchete do dia 4 do jornal estatal A-Gomhouriya.

“Levantar a proibição de viagem dos ativistas norte-americanos foi a gota d’água que fez o copo vazar”, afirmou Farid Ismail, do Partido Liberdade e Justiça (PLJ), da Irmandade Muçulmana, durante uma reunião do Comitê de Segurança Nacional do parlamento. O legislador pediu a renúncia imediata do governo de transição, a cargo das Forças Armadas. Na mesma reunião, o parlamentar liberal Ziad Bahaa Eddin al-Eleimi pediu o rompimento das relações com Washington, e acusou o primeiro-ministro, Kamal al-Ganzouri, de “alta traição por ceder à pressão dos Estados Unidos”.

A crise começou a se formar em dezembro do ano passado, quando as autoridades egípcias realizaram batidas nos escritórios de cinco ONGs pró-democráticas, apreendendo computadores e documentos. Ativistas foram acusados de receber dinheiro do exterior sem autorização e usá-lo para incitar a anarquia. As cinco organizações eram Instituto Republicano Internacional, Instituto Nacional Democrata, Freedom House, Centro Internacional para Jornalistas, todas com sede nos Estados Unidos, mais a alemã Fundação Konrad-Adenauer.

Pouco depois, 43 indivíduos, egípcios e estrangeiros, entre eles 19 empregados norte-americanos de diversas ONGs, foram acusados de participação em atividades não autorizadas. Ao serem proibidos de deixar o país, vários buscaram refúgio na embaixada dos Estados Unidos no Cairo, e outros foram detidos no aeroporto da capital quando tentavam escapar. Washington reagiu com descontentamento diante dessas medidas, que os meios de comunicação internacionais apresentaram como um exemplo de repressão à sociedade civil por parte do Conselho Supremo das Forças Armadas, que governa o Egito transitoriamente desde a queda de Mubarak, em fevereiro de 2011.

A maioria dos principais ativistas egípcios também condenou as batidas policiais. O Conselho “tenta ofuscar a imagem dessas organizações em lugar de reconhecer suas próprias falhas na administração da fase de transição do Egito”, opinou à IPS o diretor do Centro do Cairo para Estudos sobre Direitos Humanos, Bahei Eddine Hassan.

Agora, outras ONGs também temem ser vítimas da campanha oficial. Estima-se que no Egito existam cerca de 40 mil grupos da sociedade civil trabalhando em diversos temas, desde conservação da natureza até erradicação do analfabetismo. Um grande número delas foi criado a partir da queda de Mubarak, e se dedicam, em sua maioria, a assuntos de direitos humanos e construção da democracia. No entanto, segundo Fahmi, as suspeitas pela influência estrangeira na sociedade civil não carecem de motivos.

Durante o regime de Mubarak, “estas organizações podiam operar sob o lema da promoção da democracia e dos direitos humanos. Contudo, há muitos indícios de que alguns desses grupos estão aqui principalmente para obter informação sobre a política interna, especialmente depois da revolução”, explicou Fahmi. “E, talvez, inclusive para influenciar os partidos políticos egípcios de acordo com os interesses dos Estados Unidos”, acrescentou.

Em meados de fevereiro, o Congresso legislativo norte-americano elevou as apostas ao ameaçar com um cancelamento do pacote de ajuda anual que concede ao Egito, de US$ 1,5 bilhão, caso os ativistas norte-americanos não fossem libertados. A assistência de Washington ao Cairo tem sido mais ou menos a mesma desde a assinatura do acordo de paz com Israel de Camp David, em 1979.

Para não ficar atrás, a Irmandade Muçulmana, que através do PLJ controla quase metade do novo parlamento, respondeu ameaçando anular o acordo de Camp David, caso Cairo deixasse de receber a ajuda dos Estados Unidos. “A assistência norte-americana está diretamente vinculada a Camp David”, declarou à IPS o vice-presidente do PLJ e presidente do Comitê de Relações Exteriores do parlamento, Essam al-Arian. “Se Washington cortar a ajuda, nos reservamos o direito de modificar ou anular por completo o acordo de paz”, alertou. Envolverde/IPS