O Brasil ainda não se livrou do veneno que impede uma economia saudável, crescendo de forma sustentada, com baixa inflação, contas internas e externas equilibradas e com forte distribuição de renda. O lamentável é que este veneno é receitado por muitas análises como necessário para controlar o que é fundamental numa economia, a inflação.
O veneno é a maior taxa básica real de juros do mundo, a Selic, envenenando o paciente há vários anos. Logo após a elevação da Selic pelo Copom para 12,25% ao ano, no dia 9, a Corretora Cruzeiro do Sul apresentou o ranking das taxas básicas de juros reais de uma amostra representativa das principais economias de 40 países (ver quadro).
Como sempre o Brasil liderava com 6,8% ao ano, seguido pelo Chile com 1,5%, mais de quatro vezes superior. A média do conjunto dos 40 países foi de 0,9% negativa, para os países emergentes, de 0,5% negativa e para os países desenvolvidos, de 1,4% negativa. Para os emergentes, excluindo o Brasil, 0,8% negativa.
Isto precisa mudar imediatamente, e o governo pode fazer isto sem correr risco de causar inflação, pois a taxa de juros que comanda o consumo é a taxa do tomador do empréstimo e a decisão de usar o empréstimo depende da prestação caber no bolso do consumidor.
Finalmente, segundo o BC, o efeito da alteração da Selic leva nove (!) meses para fazer efeito, afirmação que não tem nenhuma base teórica nem evidência empírica. Portanto, gratuita e sem sentido.
Mas, caso o governo entenda que há uma pressão de demanda, que está tensionando a inflação, deveria é usar medidas que tornem as prestações dos empréstimos mais caras, e isto é possível com medidas macroprudenciais, que permitem exigir do sistema financeiro elevação da relação capital/empréstimo para o consumo e, também reduzir o volume de empréstimos passível de ser usado pelo sistema financeiro, via elevação dos depósitos compulsórios dos bancos no BC.
Em 6 de dezembro, ao invés de elevar a Selic, conforme queria o mercado financeiro, o governo optou por lançar as medidas macroprudenciais, afirmando que deveria aguardar tempo necessário para verificar seus efeitos sobre o mercado de crédito.
Não foi o que ocorreu, apesar do BC ter vindo a público mostrando os bons resultados alcançados, pois pressionado pelo mercado financeiro, abandonou essas medidas e, em 19 de janeiro, iniciou o ciclo de elevação da Selic e não parou mais de elevá-la.
Assim, o governo capitulou perante o mercado financeiro, pois a inflação continuou em elevação como é normal no primeiro quadrimestre de cada ano. Para agravar a inflação, fatores independentes do BC e da Selic ocorreram: 1) a forte elevação dos alimentos e das commodities em nível internacional; 2) a sazonalidade característica do 1º quadrimestre; 3) elevação excessiva dos preços do álcool e da gasolina devido à entressafra da cana-de-açúcar, agravada pela atratividade dos elevados preços do açúcar no mercado internacional, que reduziu ainda mais a oferta de álcool aos consumidores.
Os fatores internos já se diluiram, ocorreu moderação nos preços das commodities e a inflação começou a despencar, o que permitiria ao BC começar a baixar a Selic, mas não é isto o que está previsto nas últimas atas da reunião do Copom. Predomina o excessivo conservadorismo, que só enxerga perigos de elevação inflacionária no horizonte e, ante essa ameaça, só elevando a Selic, na visão atual do BC.
O dano causado pela elevada taxa Selic é devastador em todos os sentidos. Não se livrar imediatamente disto é submeter a sociedade a sacrifícios que não poderão ser suportados por mais tempo.
É importante considerar o quadro externo para avaliar seu impacto no Brasil. Para sair da crise, os países desenvolvidos emitiram moeda para socorrer seus sistemas financeiros, entupidos de títulos pobres de magnitude desconhecida. Essas emissões serviram para transformar a dívida privada em pública, com os riscos de não poderem ser pagas total ou parcialmente.
A elevação das dívidas impactou os déficits fiscais desses países e teriam que ser pagas pelas suas populações via aperto fiscal. Resultado: foram cortados direitos e salários, e com isso cresceu o desemprego e o consumo despencou. Instaurou-se o conflito social, caíram governos e minou a confiança em portas de saída da crise, que perdura.
Os países emergentes que tiveram que passar por graves problemas fiscais e cambiais na década de 1990 foram resolvendo seus problemas e conseguiram melhorar substancialmente seus fundamentos macroeconômicos com crescimentos expressivos e inflação controlada. Quando estourou a crise de 2008, não tinham títulos podres, conseguiram enfrentar a crise, fortalecendo sua posição no mercado global, sem grandes sacrifícios às suas populações.
O Brasil acompanhou em parte os emergentes. Com sistema bancário preservado, crescia 4,8% em média por ano desde 2004 até o início da crise em 2008, em face de 2% de 1981 a 2003. O que, no entanto, nos diferenciou em relação aos emergentes foi a manutenção da elevada Selic, com os danos que vem causando.
Controle de capitais – Há fortes indícios de que os países desenvolvidos, sem perspectivas de ampliar o consumo interno, continuarão a emitir moeda para aumentar seu poder competitivo nas exportações e, assim, gerar empregos.
Diante dessa avalanche de liquidez, à procura de ganhos com juros mundo afora, o Brasil é o preferido. Com a Selic nas nuvens, perde o sentido reclamar dos Estados Unidos pela emissão de dólares e da China por ajustar sua moeda à desvalorização do dólar! Nem adianta esperar que elevando o IOF para 6% vai deter a avalanche de dólares. Existem várias portas de escape usadas pelos especuladores internacionais. Prova disto são as megaentradas artificiais de investimento direto de estrangeiros (IED), que não são atingidos pelo IOF. Só a Selic em nível internacional pode deter a avalanche de dólares.
Os males da política suicida de atração dessa liquidez são muitos, e não cabem no espaço desse artigo. Eis alguns.
Distribuição de renda – Para os mais pobres, o governo dá o Bolsa Família, o Loas (para idosos e deficientes de baixa renda), vários programas de assistência social, e agora o Plano de Erradicação da Miséria (R$ 20 bilhões por ano). O custo total de todos esses programas não chega a 1,1% do PIB, mas com juros que beneficiam as camadas de renda média e alta, o custo atingiu R$ 214 bilhões (5,6% do PIB) nos últimos 12 meses até abril. É uma distribuição de renda às avessas.
Inflação – O BC dá um tiro no próprio pé ao elevar a Selic, pois com isto atrai mais ainda a liquidez externa, elevando a oferta de empréstimos para estimular o consumo. Depois reclama que a invasão de liquidez prejudica a inflação (???).
Contas internas – Pagamos juros 5,6% do PIB, contra uma média internacional de 1,8%. Joga-se fora 3,8% do PIB, que poderia ser usado para elevação da poupança/investimentos, redução da carga tributária, ampliação dos programas de renda e melhora na área social, entre várias outras ações em prol do desenvolvimento.
Reforma tributária – Essa economia facilitaria a aprovação da desejada reforma tributária, pois o governo federal poderia dispor de mais recursos para compensar eventuais perdas com a transformação do ICMS estadual, que passaria a ser cobrado no destino, ou seja, onde o bem é usado ou consumido, ao invés de ser na origem como é hoje.
Contas externas – A supervalorização cambial, devido à Selic, criou rombo externo que cresce desde 2008 e deve ultrapassar nesse ano US$ 60 bilhões!
Custo das reservas – O diferencial entre juros internos e externos custou cerca de R$ 50 bilhões em 2010 para manter as reservas internacionais. Neste ano poderá atingir R$ 60 bilhões, pois a Selic e o volume de reservas serão maiores do que no ano passado.
Desestímulo ao investimento – Arriscar na produção de bens e serviços, quando a Selic dá bons ganhos sem risco, com liquidez imediata, só com muita coragem.
Desindustrialização – Com a supervalorização cambial, tudo lá fora ficou mais barato. O jornal Estado de S. Paulo publicou, no dia 5, matéria sob o título “Importação de Produto Acabado Dispara”. Mostra a invasão de toda sorte de produtos com preços bem mais baixos substituindo produtos fabricados no país. Daí o boom das importações e do turismo externo. Para piorar a competitividade das empresas, temos o elevado custo Brasil (juros e carga tributária elevados, precariedade na infraestrutura e na logística e burocracia excessiva entre outros problemas). A cada dia que passa aumenta o grau de substituição dos nossos produtos pelos vindos de todas as partes do mundo, especialmente do Leste asiático.
Precisa mudar! Só há uma saída: baixar a Selic ao nível internacional, e combater a inflação pela limitação do crédito ao consumo, via maiores exigências de capital e de depósito compulsório ao sistema financeiro. Chega de tanto dano ao país.
* Amir Khair é mestre em Finanças Públicas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e consultor.
** Publicado originalmente no site Agência Carta Maior.