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Ponto de inflexão entre Turquia e Armênia?

Ativistas turco-armênios mostram fotos de seus ancestrais assassinados durante os massacres de 1915, em uma vigília realizada em abril deste ano. Foto: Joshua Kucera/EurasiaNet
Ativistas turco-armênios mostram fotos de seus ancestrais assassinados durante os massacres de 1915, em uma vigília realizada em abril deste ano. Foto: Joshua Kucera/EurasiaNet

 

Istambul, Turquia, 27/5/2014 – Os turcos de origem armênia receberam bem as condolências do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan pelos massacres que começaram há 99 anos, quando o Império Otomano (1299-1923) ingressava em seus últimos anos. Mas não há unanimidade de opiniões quanto a que as palavras de Erdogan conduzirão a ações de reconciliação.

Os comentários do primeiro-ministro turco, feitas no dia 23 de abril, estiveram longe de admitir que a morte de 600 mil a 1,5 milhão de armênios constituiu um genocídio, reconhecimento que o governo da Armênia busca, desde que ficou independente da União Soviética, em 1991. Como costumam fazer as autoridades turcas, Erdogan colocou a tragédia entre o caos da Primeira Guerra Mundial (1915-1919), quando os súditos otomanos de qualquer nacionalidade morriam em grandes quantidades. Porém, tanto o conteúdo como o momento de suas declarações pegaram muitos turcos de surpresa.

Os armênios celebram 24 de abril com o dia da Recordação do Genocídio. “É um ponto de inflexão na história”, disse o ativista armênio Yildiz Onen, um dos oradores de uma pequena cerimônia realizada nesse dia na estação de trem de Heydarpasa, em Istambul. Foi por essa estação que as autoridades otomanas expulsaram da cidade mais de 200 intelectuais armênios no dia 24 de abril de 1915, momento que marca o começo do genocídio.

“É uma grande mudança”, disse Garo Palián, integrante do comitê central do Partido Democrático Popular da Turquia. “Disseram que lamentam o que aconteceu, isso é o mais importante da declaração”, afirmou. Mas nem todos os oradores da cerimônia se mostraram impressionados. A Turquia deve “passar das condolências vazias para medidas de reconhecimento e restituição”, disse Raffi Hovannisian, político e ex-candidato presidencial armênio. Contudo, o fato de Hovannisian poder protestar em público, em um ato recordando a tragédia é em si um sinal de mudanças significativas na Turquia.

Em 2005, o escritor Orhan Pamuk foi acusado por supostamente “insultar a nacionalidade turca”, sob o Artigo 301 do Código Penal, por ter afirmado em uma entrevista que “um milhão de armênios foram assassinados”. Um ano depois, outro escritor, Elif Shafak, foi acusado por violar o mesmo artigo por tratar do genocídio em seu livro O Bastardo de Istambul. Nenhum dos dois foi condenado.

Os turcos começam a assumir a responsabilidade, e o governo os segue, apontou Onen. “A sociedade turca está mudando, está pressionando o governo sobre o genocídio”, acrescentou. Nos últimos anos o governo de Erdogan reprimiu a livre expressão e os meios de comunicação, em especial os críticos de seu regime. Mas, ao mesmo tempo, abriu certo espaço para o debate de questões muito delicadas para o nacionalismo turco, com o status das minorias armênia e curda.

Durante décadas as autoridades turcas “apresentavam uma narração da história que determinou toda uma visão da Primeira Guerra Mundial, de perigo e traições estrangeiras e conspiradores internos, como os armênios”, disse em uma entrevista por correio eletrônico Jenny White, professora visitante do Instituto de Estudos Turcos da Universidade de Estocolmo.

“O Partido da Justiça e do Desenvolvimento, de Erdogan, abandonou esse relato histórico a favor de uma visão mais ampla e global da Turquia como herdeira de um império mundial, de vastas fronteiras móveis, que abraçou suas antigas inimigas, Grécia e Armênia, e, por extensão, suas minorias dentro da Turquia”, pontuou White.

Essa nova visão de Erdogan, porém, passou a ser questionada pela mão dura que o primeiro-ministro aplicou aos meios de comunicação e pelo retorno da “retórica do medo e da traição dos estrangeiros e a deslealdade interna”, acrescentou a especialista. Suas afirmações sobre os fatos de 1915 talvez se devam a uma tentativa de readequar o discurso de uma Turquia mais globalizada. “É um grande passo à frente”, ressaltou.

O primeiro-ministro afirmou que, “na Turquia, expressar livremente opiniões e reflexões diferentes sobre os fatos de 1915 é exigência de uma perspectiva pluralista, bem como de uma cultura de democracia e modernidade”.

Segundo Erdogan, “alguns podem ver nesse clima de liberdade uma oportunidade para expressar afirmações acusatórias, ofensivas e inclusive provocadoras. Ainda assim, se essa vontade nos permitir entender melhor problemas históricos com suas implicações legais e transformar o ressentimento em amizade, é lógico abordar diferentes discursos com empatia e tolerância e esperar uma atitude semelhante de todas as partes”.

Um acontecimento que marcou o degelo do tema armênio foi o assassinato em 2007 do editor de um jornal armênio, Hrant Dink, cometido por um adolescente nacionalista, contou Onen. Do funeral de Dink participaram 200 mil pessoas que marcharam gritando a frase “Todos somos armênios”. Mas o julgamento por esse assassinato foi uma farsa tanto para os armênios como para os observadores internacionais.

Ativistas armênios agora dizem que Erdogan deveria apoiar suas palavras com medidas para que compareçam à justiça os agentes de segurança suspeitos de cumplicidade com esse assassinato. “Se o fizer, veremos que seu discurso é sincero”, pontuou Palián. Falta um ano para o centenário do genocídio de 1915. E cresce a pressão para que a Turquia construa uma boa campanha. Mas Ancara não está em situação de ir muito longe diante de uma situação política complicada tanto interna quanto externamente.

As próximas eleições gerais devem ser realizadas em junho de 2015. Com isso o centenário cairá na metade da campanha eleitoral. Reconhecer o genocídio armênio pode enfurecer os nacionalistas turcos que constituem um grupo de eleitores estratégicos. As circunstâncias internacionais tampouco são propícias para dar passos dramáticos de reconciliação com os armênios.

Em 2010, a Turquia abandonou uma tentativa de aproximação afirmando que as relações não podiam ser reiniciadas enquanto a Armênia não resolvesse seu conflito com o Azerbaijão, um aliado turco. A Turquia depende dos investimentos do Azerbaijão, e a crise na Ucrânia fez crescer a importância do gás natural que passa pelo Azerbaijão rumo à Europa, o que eleva a capacidade de pressão desse país sobre Ancara.

Por fim, os comentários de Erdogan não parecem ter causado grande impressão na Armênia. “O sucessor da Turquia otomana insiste em sua política de total negação”, disse o presidente desse país, Serzh Sargsyan. Por sua vez, o presidente do Museu e Instituto do Genocídio Armênio em Erevan, Hayk Demoián, afirmou em um comunicado no site da instituição que “devo confessar que esse é um passo importante, mas, lamentavelmente, não na direção de revelar a verdade, enfrentar a história e permitir a reconciliação dos dois povos”. Envolverde/IPS

* Joshua Kucera é jornalista residente em Istambul e editor do blog Bug Pit da EurasiaNet.org.