Enquanto de um lado as pessoas envolvidas com a proteção dos direitos das crianças defendem que elas devam viver plenamente a infância em lugar de consumir, por outro as reações do mercado incluem argumentos como: “Eu, por exemplo, fui exposto a todo tipo de programação da TV na minha infância e não cresci com problemas”.
“Sempre comi porcaria e tomei refrigerante e nunca engordei”. “Por exemplo, eu sempre apanhei dos meus pais e não cresci revoltado por isso”. “Eu sempre ganhei tudo que quis e hoje sou uma pessoa normal”. É comum as pessoas colocarem a si mesmas como exemplo e seria bom que pudessem ser, desde que estes exemplos não fossem, no mínimo, socialmente questionáveis, e desde que pudessem ser seguramente replicados como modelos de conduta para uma vida saudável, justa e feliz. E o primeiro aspecto a ser levado em conta nestes casos é que as experiências passadas determinam nosso modo presente de sentir e julgar. Por isso, precisamos estar certos de que todas essas experiências tenham sido realmente exemplares.
Comparações como as que foram citadas, costumam ser mais frequentes diante de movimentos por mudanças em prol do bem estar comum. Um deles, por exemplo, pede urgência na regulamentação da publicidade dirigida ao público infantil. Enquanto de um lado as pessoas envolvidas com a proteção dos direitos das crianças defendem que elas devam viver plenamente a infância em lugar de consumir, por outro as reações do mercado incluem argumentos como: “Eu, por exemplo, fui exposto a todo tipo de programação da TV na minha infância e não cresci com problemas”, “Sempre ganhei tudo o que pedia, porém hoje trabalho duro para comprar tudo o que quero”.
Poder aquisitivo, títulos acadêmicos, sucesso profissional, padrões de conduta aceitáveis e mesmo boas ações nem sempre são suficientes para nos tornar humanamente bem sucedidos. E esse é justamente um ponto preocupante, sobre o quanto o convencimento contínuo das crianças para consumir em lugar de brincar contribui para induzi-las a concluir que o sucesso material pode definir, por si só, uma pessoa feliz. Ou exemplar.
O filme Duas Vidas parece ser inspirador para uma reflexão sobre a questão: Russ (Bruce Willis), personagem central, é um consultor de imagem, rico, altamente exigente e, claro, considerado um exemplo no cenário profissional. No entanto, nas relações pessoais, Russ invariavelmente fracassa. E o motivo disso logo se revela. Quando criança, seu pai o impedia de chorar em situações difíceis, exigindo que ele fosse precocemente forte. Alice Miller, psicóloga polonesa, com notável trabalho focado nos reflexos da educação na vida adulta, diz algo muito compatível com o que sucede ao personagem: “A necessidade interior de construir constantemente novas ilusões e negações, a fim de evitar a vivência da própria verdade, desaparece assim que essa verdade for encarada e vivenciada”.
O modo bonito como Russ mudou sua visão de mundo foi, claro, coisa de cinema, mas, nem por isso deixa de ser o que se espera de qualquer pessoa justa e humana. Abrir mão de ganhos fáceis e rever conceitos nem sempre é confortável, mas mudar pelo bem de muitos, quanto mais se forem crianças, é um ótimo negócio com a vida. E pode produzir ideias e apontar caminhos para um sucesso ainda mais amplo e inteligente, capaz de fazer o empreendedor sorrir com a integridade de uma criança, por exemplo.
* Maria Helena Masquetti é graduada em Psicologia e Comunicação Social, possui especialização em Psicoterapia Breve e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana.