Lembro bem do dia em que a professora nos enfileirou para escolher quem seria a solista do balé e distribuir, na coreografia, os lugares das cerca de 40 alunas. Quem não gostaria de ganhar o destaque e dançar na parte mais bonita da música? Todas, inclusive eu. De repente, ela me chamou e me colocou na primeira fila, atrás de ninguém, de cara com o público. Fiquei feliz e, em seguida, triste, culpada. Fui andando para o tal lugar sem olhar para ninguém. Não conseguia. Achava que as minhas colegas iriam me odiar até a morte porque eu, afinal, ocupei aquele lugar e não elas – e elas queriam tanto quanto eu.
Por outro lado, embora não tenha passado pela minha cabeça à época, sei que se eu não conseguisse a primeira fila, ia me conceder um atestado de incompetência eterna e repetir para mim mil vezes que eu não dançava nada. Era uma briga cruel entre a culpa de ter tirado o lugar das outras 39 meninas contra o sentimento de fracasso de estar em alguma fila tampada por uma fulana em sapatilhas. Ah, sim, acabei sendo escolhida como uma das quatro solistas também.
Corta. Passam-se mais de dez anos e vamos à cena em que fui dançar Dom Quixote pela última vez. Ganhei, novamente, um destaque, nada demais, mas o suficiente para despertar, claramente, a raiva de quem mais uma vez queria aquele papel. Foi rápido e direto: “Manoella, ali na frente”. E lá fui eu, cabeça baixa, cara de pedido de desculpa. Um dos colegas chegou a me perguntar por que fui com o pesar de quem estava indo para a forca. “Fiquei sem graça”, respondi ainda mais sem graça com a idiotice que tinha acabado de dizer.
É a mesma cara de quando eu passo perto dos moradores de rua comendo alguma coisa supérflua, como sorvete. É a mesma de quando alguém fala que meu pé é lindo, a mesma de quando dizem que vão me dar um aumento ou quando um cara lindo pede meu telefone! Eu não sei se é justo, não sei se alguém merecia mais do que eu, se eu sou mesmo a pessoa certa para ocupar aquele papel e fico me boicotando, talvez para mostrar que consegui, mas eu não sou e nem me acho melhor do que ninguém. Como a gente é idiota, não?
Às vezes, nem percebemos, mas conquistamos coisas e ficamos sem saber como lidar com elas. Num nível mais profundo, corremos o risco de não “ganharmos” mais essas chances porque a oportunidade vem e causa um desconforto tão grande que ela é completamente desperdiçada. Quantas vezes eu joguei tudo pela janela por não querer me mostrar melhor do que ninguém! E quem vai dar destaque a quem não sabe ser destaque?
Quer saber? Parei com essa bobagem hoje, por vários motivos:
O “espiritual”: se a oportunidade é minha, ela é minha por direito. Não tomei nem roubei de ninguém, portanto, é inquestionavelmente minha, merecida, e preciso acolher o que o “universo” me oferece.
O racional: se me colocaram ali é porque eu devo ocupar aquele lugar sem polemizar. Isso desgasta a relação com quem te colocou ali.
O simples: porque todos nós devemos bancar as nossas escolhas e, acima de tudo, quem somos. É o mínimo.
Cuidar de si, acolher, receber são características marcantes do feminino e para não ficar nessa explicação tão mental, racional, masculina (entenda como a Tato enxerga esses dois universos) , e incorporar a nova postura de vez resolvi que vou internalizar que eu mereço muitas coisas. A primeira atitude que vou ter é largar de ser tão pão-dura. Eu realmente preciso comprar a sapatilha mais barata? E se eu merecer aquela um pouco mais cara porque eu trabalho e posso me agradar? A questão de “merecer” é fundamental, tem a ver com amor, mas para sair do mental e chegar ao coração, é preciso colocar em prática, ou seja, saber receber. Esse será meu segundo esforço: receber elogios, presentes, agrados. Contarei os resultados em um post futuro. Até lá, aceito sugestões e dicas. Vamos compartilhar?
* A Revista Tato aborda o feminino com respeito à individualidade e escolhas de cada mulher, e é realizada pelas jornalistas Manoella Oliveira e Thays Prado e a designer Vanessa Siqueira. E-mail: [email protected].
** Publicado originalmente no site EcoD.