Alguns dias se passaram após regressar do Rio de Janeiro, no dia 24, onde trabalhei desde o dia 15, na cobertura da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) e parte da Cúpula dos Povos na Rio+20 por Justiça Social e Ambiental. Levei esse tempo para “assimilar” e resolver escrever algumas das impressões que tive dessa experiência, pois precisava meditar um pouco mais sobre o desenrolar de tudo que passou por lá e sair realmente do “efeito bolha”, que nos para no espaço e tempo e exige que reencontremos o rumo para prosseguir.
E, em duas palavras, defino a sensação que mais me toca de tudo isso: o pós-Rio+20 requer amadurecimento e seriedade de todos os atores, desde as nações e universo empresarial até nós, da sociedade civil. Vivemos somente um ensaio. Se saí mais feliz ou infeliz da Rio+20? Talvez a resposta mais coerente (pelo menos, agora) é de ter constatado que as minhas responsabilidades como cidadã e profissional só aumentaram nesse processo e que o trabalho continua e novos capítulos têm de ser escritos por todos nós.
Para continuar essa reflexão, vou fazer um parênteses, e retornar um pouco no tempo, quando comecei a escrever em 2008 de forma mais dirigida à temática socioambiental, circular na atmosfera dos fóruns sociais mundiais, a partir de 2009, em Belém, estudar a história socioambiental em um lato sensu sobre Meio Ambiente e Sociedade. Somado a isso, a ser facilitadora (como educadora) sobre educação ambiental em sala de aula e a me voltar com mais rigor para o meu papel de cidadã…
Será que comecei a florescer tarde nesse “engajamento”, se assim pode se dizer? Não sei, acho que cada um tem seu tempo e o meu (como de tantas milhares de pessoas) foi construído desde a infância, adolescência, e com o exercício do jornalismo iniciado em 1992, coincidente, no ano da Cúpula da Terra (da qual não participei à época).
E foi com esse repertório formado por uma colcha de retalhos, que escrevi a primeira matéria sobre – O Que Esperar da Rio+20?, no site Planeta Sustentável, em fevereiro do ano passado. De lá para cá, foram tantas outras lá, como em outros veículos – revistas Fórum, Filosofia, Sociologia, Gerência de Risco, mais recentemente na Página 22, além do blog Cidadãos do Mundo, até chegar ao exercício da prévia e cobertura, que fiz para o especial do site Mercado Ético e para a matéria para a revista Fórum, que sairá na próxima edição.
No processo de imersão, ainda me dediquei alguns meses a participar do Comitê Paulista da Sociedade Civil para a Rio+20, tentei colaborar com certa regularidade com grupos sobre a Rio+20/Cúpula no Facebook, entre outras iniciativas participativas.
Desde o início desse olhar mais dirigido, nessa ausculta de fontes oficiais e da sociedade civil e observações, a tônica da “ausência” de ambição do que sairia da Rio+20 já se figurava. O histórico das negociações revelava que não haveria acordos vinculantes e caminhava para negociações políticas com caráter voluntário. E a cobrança vinha de todos os lados: será feito o balanço do legado da Eco 92 (Convenções sobre a Mudança do Clima, Diversidade Biológica, da Floresta, Desertificação, Carta do Rio, Agenda 21…)?
Essa sensação de hiato pairava e continuou dessa forma, durante os eventos, nos corredores e pavilhões do Riocentro. A sensação, para mim, em dados momentos, era de estar em uma bolha revestida dos problemas reais do mundo. Um séquito de seguranças por todas as partes (que não impediu que tivesse a minha máquina furtada, capítulo à parte…), sistemas de crachás, protocolos e pessoas de todos os países, idiomas, interesses, circulando, pessoas sondando resultados, participando de negociações oficiais, dos chamados side events, parando na praça de alimentação, onde eram comercializados produtos do mundo capitalista para todos os bolsos e gostos, desde veganos a calóricos e industrializados.
Observava que quase todo mundo vestia preto (das delegações a seguranças), com exceção de povos indianos, africanos e andinos… De certa forma, essa composição era mais um reflexo interessante desses mundos diferenciados. Ver o colorido chamava a atenção de quem passava por lá e era seguramente objeto da imprensa. Dava “luz” a um ambiente opaco, na sua própria conformação arquitetônica também. A simulação de uma pequena floresta num saguão de entrada e “cartinhas” de crianças que estavam numa parede lembravam que havia essa luminosidade a perseguir.
Não cheguei a ir à plenária dos chefes de Estado e representantes de governos, no Pavilhão 5 (entre 20 e 22), mas via os pronunciamentos pelo telão do Riocentro (pois havia limite para jornalistas no espaço, que disputaram sua vaga, chegando mais cedo numa fila de senha). Uma sensação, muitas vezes, protocolar, o que me incomodava, de certa forma. O que me levava às bases era ter a oportunidade de conversar com representantes de países africanos e insulares, em alguns momentos, desde o ponto de ônibus aos corredores.
Nas coletivas de imprensa sucessivas cravadas em 30 minutos cada, foi possível obter obviamente muitas informações e ouvir discursos úteis, no sentido da concretude do conteúdo, e outros superficiais. Um termômetro do universo oficial. Entre as diversas falas de especialistas, as que me chamaram a atenção, pela sensibilidade, eloquência e historicidade, foram de Maurice Strong, Gro Harlem Brundtland e Ignacy Sachs. Não estavam lá para perder tempo. E foram incisivos, quanto à nossa pegada e aos limites do planeta.
Talvez, da expectativa sobre o anúncio final do documento (http://www.uncsd2012.org/rio20/thefuturewewant.html), o que tenha saído do script prévio das especulações, foi a ausência dos temas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), que começarão a ser formatados a partir de 2014, numa espécie de continuidade (mas de caráter global), após os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODMs). Isto apesar de exaustivamente haver a abordagem de temas macro, como água, pobreza, oceanos (quem sabe uma convenção realmente no futuro próximo?), florestas…
Acredito que o Plano de Produção e Consumo, no horizonte de dez anos, é um dos mais difíceis de implementação e está no centro do modelo de governança da sustentabilidade. Basta olhar as notícias nos últimos dias no Brasil e no mundo, com as decisões dos governos diante da crise, com o mote do crescimento. O espectro desenvolvimentista ainda está muito presente e os discursos evocam novamente o PIB, sendo que no próprio evento já se estabeleceu que é injusto, e se apontaram outras alternativas, como no Relatório de Riqueza Inclusiva 2012.
Paralelamente, os Programas Energia Sustentável para Todos, de se zerar a fome, de impulsionar o transporte sustentável e a decisão de se fortalecer o Pnuma (que depende da próxima Assembleia da ONU) ficam, de certa forma, numa situação relativizada aos planos nacionais, tema defendido com vigor pelo professor Ignacy Sachs, como também por Ladislau Dowbor, entre outros. Afinal, na instância do sistema com 193 países, nada se concretiza se não for interiorizado pelos governos em suas políticas públicas.
Os Diálogos sobre Desenvolvimento Sustentável, promovidos sobre dez temas pelo governo brasileiro somente com representantes da sociedade civil (com contribuições também na plataforma dialogues e de cem especialistas, além do público convidado), de 16 a 19 de junho, poderiam ter sido um grande avanço se os “resultados” das 30 propostas que saíram de lá tivessem algum tipo de interferência no documento final. Entretanto, essa não era a intenção da organização, pois o documento já estava fechado e, pode-se dizer, praticamente imexível.
A determinação dos diplomatas brasileiros era que saísse um documento final, mesmo que postergante em ações, como desde o início da composição do rascunho zero (com a participação do representantes das nações e dos nove Major Groups da sociedade) sinalizava. Ao assumir as rédeas da negociação, isso se tornou imperioso, tendo em vista que, em alguns momentos nos bastidores, houve a possibilidade de não sair nada.
Um dos argumentos da Organização das Nações Unidas (ONU) e do governo brasileiro (anfitrião) – principalmente no que tange às convenções – é que há os fóruns específicos das conferências das partes… Que deixavam muito a desejar. Vide o ponto de interrogação para o pós-Protocolo de Kyoto e para a ratificação do Protocolo de Nagoya (quanto à biodiversidade) por apenas cinco países, em 2010.
O mundo fora da bolha
Fiquei hospedada parte no bairro da Glória e outra em Botafogo, em hostels simples, no centro do Rio e da frente do Hotel Novo Mundo, no Flamengo, pegava o ônibus oficial gratuito para chegar até o local da Conferência, no Riocentro. Em outras circunstâncias, ônibus urbanos. Poucas vezes, recorri a táxis.
Em cerca de uma hora e vinte (do Flamengo ao Riocentro), via da janela do ônibus toda a dicotomia do planeta na paisagem carioca. De um lado, os morros com suas construções apinhadas, de outro, o Píer Mauá, com contêineres, demonstrando os bastidores da produção e consumo. Observava de longe o teleférico da Comunidade do Alemão, e me remetia a tantas conquistas e necessidades ainda vigentes dessas populações. Na estação de tratamento de esgoto, próximo ao Riocentro, o reflexo da falta de educação ambiental batia à porta… Mais um pouco adiante, nos córregos próximos, havia esgoto a céu aberto, lembrando da importância da infraestrutura, acima de tudo.
Centenas de veículos nas ruas demonstravam que estamos longe do transporte sustentável. Ver nas prateleiras uma mesma garrafa d’água custar de R$ 0,89 a R$ 4,00 me fez lembrar do mercado especulativo e ganancioso. Todos esses flashes diariamente me chegavam à mente. Quando caminhava para chegar a meus destinos também sentia essa avalanche de contradições.
Por outro lado, a Rio+20 propiciou um movimento mais amplo. Empresários, governantes e terceiro setor também se dividiam no Parque dos Atletas, no Hotel Windsor, no Forte de Copacabana, em outros “espaços-bolhas”. Nesse hall de encontros, considero importante, nessa conjuntura, os caminhos apontados em eventos como C40 (das maiores cidades do mundo), de legisladores, de juristas, de cientistas e de acadêmicos. Eram tantas coisas ocorrendo ao mesmo tempo, difícil de mensurar.
No Parque dos Atletas, onde havia grandes estandes de governos e países, com exemplos de iniciativas do que melhor há em cada um, sem tocar nas mazelas, me deixou um pouco desconfortável. Obviamente, considero importante trazer as soluções, mas certo ar high-tech, pomposo, em determinados locais, talvez, destoasse do próprio foco do evento, que é a governança da sustentabilidade e da chamada economia verde no contexto do combate à pobreza. Uma bancada enorme de frutas expostas, no meio do espaço, servia como vitrine em vez de poder ser consumida pelas pessoas. Enfim, reflexões.
Contexto histórico
Nesse vaivém, quais eram os contextos do ontem e do hoje? Na Eco 92, o mundo saia da Guerra Fria e se desenhava uma nova configuração de atores e os movimentos socioambientais ganhavam um tônus nesse espaço. Esse desenho se formava historicamente, desde a Conferência de Estocolmo, em 1972, em que Os Limites do Crescimento (documento criado pelo Clube de Roma), o relatório Nosso Futuro Comum, da Comissão Brundtland (1987) e a Conferência de Johannesburgo (2002), entre tantos outros documentos e eventos importantes… Sempre reitero que o livro Primavera Silenciosa, da bióloga Rachel Carson, em 1962, foi a voz necessária vinda da sociedade para se abrir um caminho.
Mas ao mesmo tempo ascendiam ao capitalismo em grande parte do globo e, consequentemente, à métrica do Produto Interno Bruto (PIB), em que o famoso tripé da sustentabilidade sempre foi capenga no quesito ambiental e social e ainda é o calcanhar de Aquiles pós-Rio+20. Países ricos, em desenvolvimento e pobres eram e são o retrato do hoje, que não mudou nesses últimos dias.
No aspecto geopolítico, formou-se um mosaico de “Gs” – G8, G20, G77, União Europeia… Sistemas financiadores – Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Mundial (Bird), Fundo Monetário Internacional (FMI) e bancos nacionais importantes, como o próprio BNDES, brasileiro, e o asiático. E com um peso determinante, das grandes corporações.
Para completar esse quadro, existe uma crise socioeconômica que se arrasta desde 2008 – e ainda está longe de acabar – e a reação em várias partes do globo, por meio dos Indignados, da Primavera Árabe, do Ocuppy. Novas guerras civis e a guerra da fome, com os refugiados climáticos, marcam a atualidade, que estava fora dos muros do Riocentro e até do “espaço aberto” do Aterro do Flamengo, de certa forma.
A pobreza, a fome e o desemprego atingiram limites insuportáveis, que relatórios são incapazes de encobrir na ciranda de números expostos em dezenas de documentos, nos eventos oficiais e paralelos. Nessa dicotomia, em países emergentes, como o Brasil, se destaca a ampliação da classe C, como conquista, sem ver todas as conjecturas envolvidas nessa ascensão, quando tratamos dos limites de um planeta onde vivem mais de sete bilhões e passará a número superior a nove bi, em 2050.
De outro lado, o que ficou claro, é que permanecem os polos de antagonismos ainda marcantes entre as minorias, grupos com interesses diversos da sociedade civil, desde povos tradicionais a sindicatos de trabalhadores, que num viés em comum apelam pela justiça socioambiental, e os governantes e as corporações. A fala da sociedade se configurou nos apelos e discussões durante a Cúpula dos Povos, que é nascente dos fóruns sociais… Pude participar e cobrir o Fórum Social Temático, em Porto Alegre, no início deste ano, que deu o pontapé inicial a esse processo, que estava sendo forjado meses antes. O documento final reitera os pilares destacados na ocasião (http://cupuladospovos.org.br/2012/06/declaracao-final-da-cupula-dos-povos-na-rio20-2/) .
Enfim, como fazer? Ainda é a pergunta provocadora que permanece.
* Sucena Shkrada Resk é jornalista com especializações em Política Internacional e Meio Ambiente e Sociedade. Fez parte do time do Mercado Ético que cobriu a Rio+20 e edita o blog Cidadãos do Mundo.
** Publicado originalmente no site Mercado Ético.