Piracicaba, Brasil, 4/4/2011 – Após quase cinco séculos sendo utilizada apenas para produção de açúcar e alguns produtos menores, como aguardente, álcool e melaço, a cana-de-açúcar passou a ser, no Brasil, fonte de infindáveis derivados e objeto de múltiplas pesquisas científicas e tecnológicas. O etanol cresceu como outro produto principal nas três últimas décadas, dividindo com o açúcar a sacarose extraída nas moendas. E agora são os dejetos, como bagaço, palha e vinhoto, que ganham protagonismo.
O vinhoto, efluente da destilação do etanol, alimentará as algas microscópicas que produzirão biodiesel dentro de alguns anos, segundo um projeto do Centro de Ciências Agrárias (CCA) da Universidade Federal de São Carlos, localizado em Araras, a 170 quilômetros da cidade de São Paulo. Seus muitos nutrientes acelerarão a proliferação das algas que são ricas em ácidos graxos para elaborar biocombustíveis.
Além disso, serão produzidos fertilizantes, já que “as algas sequestram 64% do potássio presente no vinhoto”, explicou à IPS o chefe do Departamento de Tecnologia Agroindustrial do CCA, Octavio Valsechi. Outra vantagem é evitar a monocultura de oleaginosas em grandes extensões de terra. A dúvida é se seu custo não será superior ao do biodiesel feito a partir de óleos vegetais.
O bagaço é cada dia melhor aproveitado para geração de eletricidade nas mesmas centrais açucareiras. Um Centro de Gaseificação de biomassa, a ser construído nos próximos três anos em Piracicaba, a 160 quilômetros de São Paulo, apresenta perspectivas mais promissoras.
Trata-se de uma usina-piloto para produzir gás de síntese, que pode triplicar a eletricidade gerada pelo bagaço, além de se converter em combustível líquido ou precursor de plásticos, segundo o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), do governo do Estado de São Paulo, que projetou o plano e associou-se a várias entidades públicas e privadas para viabilizá-lo. No mundo já se gaseifica carvão, mas a tecnologia para biomassa só agora será testada em escala industrial.
O potencial elétrico do bagaço ao utilizar a tecnologia atual, de queima direta nas caldeiras, equivale a “uma Itaipu”, em referência ao gigantesco complexo hidrelétrico compartilhado por Brasil e Paraguai com capacidade de 14 mil megawatts, segundo a União da Indústria da Cana-de-Açúcar, que reúne as maiores empresas do setor. Mesmo nesse método tradicional, “estamos perdendo a metade do potencial energético da cana”, porque o bagaço é queimado com muita umidade, lamentou Octavio.
A crescente mecanização da colheita, que será total a partir de 2014 no Estado de São Paulo, com 60% da produção nacional, permite que a palha da cana deixe de ser queimada. Mas, ainda se estuda a melhor maneira de recolhê-la no campo. “De cada cana pode-se retirar tudo o que o petróleo produz”, assegurou à IPS Tadeu Andrade, diretor do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), criado em 1969 pela Copersucar, uma cooperativa de centrais açucareiras paulistas que se expandiu para outros Estados.
É o mais próximo do “moto contínuo (máquina de movimento perpétuo), porque se realimenta”, gerando fertilizantes e a energia para seu próprio cultivo e processamento, além de produzir mais biomassas do que outros grandes cultivos, como milho ou soja, acrescentou. Seu vinhoto, rico em potássio, aduba sua replantação, bem como os resíduos que ficam nos filtros da indústria e a palha deixada no solo, afirmou, reconhecendo que é necessária uma complementação com fertilizantes químicos.
O caldo de cana, antes de ser transformado em açúcar ou etanol, é um substrato que pode ser usado para multiplicar microorganismos que servem a inúmeros produtos, desde polímeros que regeneram ossos, a alimentos, medicamentos e cosméticos variados, além de plasma sanguíneo, disse Octavio, após lamentar a escassez de pesquisadores para a enorme demanda canavieira. O caminho para a energia do hidrogênio pode também estar na cana, afirmou.
A “alcoolquímicia” já avançou muito no Brasil e uma grande indústria petroquímica produz os plásticos denominados “verdes”, por serem biodegradáveis. A cana também permite fazer um tipo de combustível de aviação. A Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer), uma das grandes fabricantes de aviões pequenos e médios de passageiros e outros de uso militar, anunciou para 2012 um voo de teste com um aparelho que utiliza bioquerosene.
Essa diversificação dos produtos da cana, impulsionando o conhecimento científico de suas potencialidades, tem origem no Programa Nacional do Álcool (Pró-Álcool), iniciado em 1975 para substituir a gasolina e reduzir a importação de petróleo, cujo preço havia quadruplicado em 1973. Desde então, a colheita brasileira de cana aumentou sete vezes, mitigando a pressão petroleira, mas gerando outros problemas que exigem solução.
O vinhoto, por exemplo, foi um desastre ambiental no começo do Pró-Álcool. Derramado nos rios, matou milhões de peixes na década de 1980 ao retirar-lhes oxigênio. A ameaça diminuiu quando começou a ser usado como fertilizante, ao se descobrir que contém muito potássio.
A produção de etanol de cana continua sendo proibida em muitos países latino-americanos, cujos solos já ricos em potássio e lençóis freáticos pouco profundos correm o risco de serem contaminados pela “fertirrigação”, admitiu Octavio, agrônomo especializado em cana-de-açúcar desde sua graduação em 1980. Como cada litro de etanol destilado gera dez litros de efluente, as alternativas para se livrar do vinhoto são muito caras. Por isso as algas que capturam potássio podem ser uma solução.
Na Argentina, com um solo com muito alumínio e clima menos favorável do que o do Brasil, é ainda mais difícil produzir etanol a partir da cana, disse Marcos Vieira, também professor do CCA que dirige a brasileira Rede Interuniversitária para o Desenvolvimento do Setor Sucroalcooleiro (Ridesa), de pesquisadores financiados pelo governo nacional para melhoria genética da cana.
As variedades desenvolvidas pela Ridesa, identificadas pela sigla RB, cobrem hoje 60% dos canaviais do Brasil e contribuíram para elevar a produtividade em 85% por hectare, havendo casos de até 150 toneladas, disse Marcos. Há 35 anos, não se chegava a 50 toneladas por hectare, em média. A Ridesa busca “variedades ecléticas”, que se adaptam a diferentes condições de clima e solo do Brasil, mantendo boa produtividade e resistência a pragas e secas, explicou.
Por outro lado, o CTC, que atende prioritariamente seus associados da cooperativa, adotou uma orientação oposta, de desenvolver variedades específicas para diferentes solos e climas. “São 25 combinações edafo-climáticas”, cujos mapas ajudam os agricultores na escolha da variedade mais produtiva para sua terra, explicou Andrade.
Mas os avanços genéticos, que colocaram o Brasil em vantagem em relação a outros países produtores de cana, “por si só não melhoram a produção no campo”, reconheceu Tadeu. São necessárias também práticas agronômicas, que se disseminaram em muitos cursos do CTC, e ainda de mecanização. Uma regra adotada nos anos 1980, que define o preço da cana segundo seu índice de sacarose, obrigou os produtores a usar as melhores variedades de cana e técnicas de cultivo, acrescentou.
Foi “uma revolução”, segundo o professor universitário Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura e também vinculado ao setor. As pesquisas e o desenvolvimento de novos produtos da cana se estenderam também às grandes empresas, como a norte-americana Amyris, especializada em biotecnologia, que busca no Brasil garantir o fornecimento de cana para produzir combustíveis para aviões, lubrificantes, cosméticos e outros derivados. Envolverde/IPS