Belfast, Irlanda do Norte, outubro/2014 – Como se pode justificar que no século 21 continuemos treinando milhões de homens e mulheres para engrossar os exércitos e mandá-los à guerra?
A mortandade de civis nas guerras é imensa e a destruição da vida de militares é altíssima. Acrescente-se o custo econômico e o ambiental, e o custo do potencial humano que cientistas e especialistas empregam para a pesquisa e produção de armas cada vez mais letais, em lugar de se dedicarem ao bem-estar e à saúde.
Por exemplo, Estados Unidos e Grã-Bretanha cometeram um genocídio entre 1990 e 2012, que mediante guerras e sanções se estima ter custado a vida de 3,3 milhões de iraquianos, incluídas 750 mil crianças.
E todos vimos em nossas televisões o horrível espetáculo dos 50 dias de bombardeio pela força militar de Israel sobre Gaza, entre julho e agosto deste ano, incluindo alvos civis.
Mas poderíamos perguntar: por que nos surpreende a crueldade dos militares, já que fazem o que lhes foi ensinado, matar, sob as ordens de seus governos?
É penoso ouvir políticos e militares se orgulhando de suas proezas bélicas. A imprensa nos martela com propaganda que glorifica o militarismo, nos diz que para nossa segurança precisamos de armas nucleares, armas mais modernas, e justificam a guerra para matar os assassinos, que, segundo eles, poderiam ameaçar nossas vidas.
Sustento que nunca devemos ser ambivalentes diante da violência, mas afirmar que sempre é um recurso errôneo, não importa quem a exerça nem as razões que alegue para justificá-la.
Entretanto, há muita gente em condições tais que não conseguem viver em paz.
São aqueles que vivem em luta com as raízes da violência, que podem ser pobreza, desemprego, racismo, conflitos bélicos, ou governos autoritários ou neofascistas, que podem desencadear forças incontroláveis de tribalismo ou nacionalismo. Trata-se de formas perigosas de identidade que é necessário dissuadir.
O ponto de partida é o reconhecimento de que a dignidade humana é mais importante do que nossas diferentes tradições, do que nossas vidas, que as do próximo são sagradas, e que podemos resolver nossos problemas sem lançar mão da violência, que podemos aceitar a diversidade e a alteridade, que é possível a reconciliação de antigas divisões e perdoarmos e sermos perdoados, se optarmos por escutar, dialogar e empregar a diplomacia como via privilegiada para o desarmamento, a desmilitarização e a instauração da paz.
Em meu país, Irlanda do Norte, pudemos superar um prolongado e violento conflito étnico-político quando a comunidade civil organizada decidiu renunciar a toda forma de violência e se comprometeu a trabalhar para a reconciliação, a justiça e a paz.
Essa passagem da violência para a paz foi possível graças a um diálogo sem condições e aberto a todos os problemas, e foi assim que não somente terminou a violência como, depois de superado o conflito, continuamos trabalhando para consolidar a confiança mútua.
Esperamos que nosso caso sirva de exemplo para outros países, como a Ucrânia, onde é necessário buscar a solução com base na Carta das Nações Unidas e nos Princípios de Helsinque.
Também temos que responder ao desafio de construir estruturas por meio das quais se amplie a cooperação e que reflitam as relações de interconexão e de interdependência.
Atualizemos a lição dos fundadores da União Europeia (UE), de estreitar e integrar a vinculações econômicas entre seus membros para afastar a possibilidade de conflitos bélicos entre eles.
Infelizmente, vivemos a crescente militarização da Europa e seu encaminhamento, sob a liderança dos Estados Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), para uma nova forma de guerra fria.
A UE e muitos de seus países, que até um passado recente participaram de iniciativas das Nações Unidas para resolução pacífica de conflitos, estão agora empreendendo o caminho inverso e somam suas forças para agressões militares sob o comando da Otan contra países como Afeganistão, Iraque ou Líbia.
Por isso afirmo que é preciso abolir a Otan e avançar para o desarmamento mediante ações não violentas e resistência civil.
Os meios de resistência são fundamentais. A mensagem dos pacifistas, que afirmam que a força militar não soluciona os conflitos, mas os exacerba, nos apresenta o desafio de encontrar e aplicar novas formas de persuasão.
Temos que proporcionar educação pela paz em todos os estratos sociais e impulsionar a criação de ministérios da paz em todos os países.
O mundo contemporâneo está agora enfrentando a expansão do que o presidente norte-americano Dwight Eisenhower (1953-1961) chamou de “complexo industrial militar” e que, segundo alertou, poderia destruir a democracia nos Estados Unidos.
Mais de meio século depois da premonição de Eisenhower, hoje em dia vemos que um seleto grupo de industriais e financistas, políticos, militares e proprietários de meios de comunicação, está no centro do poder e exercem forte influência sobre muitos governos. Basta citar o exemplo do ascendente lobby dos fabricantes de armas e de Israel sobre a política norte-americana.
Os vemos como protagonistas nas intervenções militares recentes ou em curso, ocupações e guerras por terceiros, todas apresentadas como “intervenções humanitárias ou pró-democracia” que, na verdade, causam grande sofrimento, especialmente aos mais pobres. Seu verdadeiro objetivo é a dominação e o controle de outros países, e em muitos casos de seus recursos naturais.
A tarefa do movimento pacifista é substituir a agenda belicista do complexo industrial militar por uma política de paz, justiça, direitos humanos e vigência do direito internacional em cada país, e cooperar entre nós para que estes ideais prevaleçam em escala internacional. Envolverde/IPS
* Mairead Maguire, da Irlanda do Norte, é militante pacifista e prêmio Nobel da Paz 1976.