Cairo, Egito, 12/6/2013 – O crescente enfrentamento no Egito, durante a fase posterior à revolução de 2011, entre o Poder Judiciário e o presidente Mohammad Morsi, parece chegar ao seu ponto máximo com um projeto de lei que regula o trabalho judicial. O projeto está em exame no Conselho Shura, câmara alta do parlamento com status consultivo, mas atualmente dotado de poderes legislativos.
O artigo mais polêmico da iniciativa é o que propõe reduzir a idade de aposentadoria dos juízes de 70 para 60 anos. Milhares de magistrados terão que se aposentar se for aprovada a proposta, apresentada pelo Partido Wasat, de tendência islâmica moderada, e apoiada pela Irmandade Muçulmana, à qual pertence Morsi, no poder desde junho de 2012.
Os críticos do projeto, entre os quais a maioria dos juízes e da oposição laica, consideram que é uma tentativa da Irmandade Muçulmana de usurpar o poder e preencher os cargos judiciais com pessoas próximas à sua ideologia. O líder esquerdista Hamdin Sabahi, que ficou em segundo nas primeiras eleições justas realizadas no Egito, há um ano, disse que, se a lei for aprovada, se estará cometendo um “massacre” de juízes no país.
“Há uma clara intenção da Irmandade Muçulmana de dominar as instituições judiciais do país para que seja possível a justiça supervisionar as futuras eleições”, ressaltou Sabahi em maio, quando participava de um protesto diante da sede do Conselho Shura, no Cairo. A câmara alta do parlamento, com poderes legislativos até ser eleita a nova Assembleia do Povo, processo que está em um limbo legal, “não tem direito de legislar porque foi eleita apenas por 7% do voto popular”, argumentou.
O professor de direito constitucional da Universidade do Cairo, Gaber Gad Nassar, concordou com Sabahi. “O projeto de lei, que obrigará cerca de oito mil juízes a se afastarem de suas funções, constitui uma tentativa da Irmandade Muçulmana e de seus aliados de controlar a justiça”, afirmou Nassar à IPS. A seu ver, a organização tenta “designar seus próprios juízes para poder arranjar as próximas eleições parlamentares a seu favor”.
Por seu lado, os defensores da iniciativa negam categoricamente as acusações e afirmam que a lei só objetiva purgar a justiça de elementos favoráveis ao deposto presidente Hosni Mubarak, que governou o país de 1981 a 2011. Apoiam o projeto a Presidência, a Irmandade Muçulmana e seu braço político, o Partido da Liberdade e da Justiça (FJP).
Walid Shirabi, porta-voz do movimento Juízes pelo Egito, integrado por juízes e funcionários judiciais favoráveis à Irmandade Muçulmana, considerou “ilógicas” as críticas da oposição de que o projeto de lei propõe preencher o Poder Judiciário com magistrados dessa organização. “Segundo a Constituição, o Conselho Judicial Supremo (SJC) é responsável por designar os juízes”, que depois devem contar com a aprovação do presidente, afirmou à IPS.
Shirabi ressaltou que “o SJC não tem nenhum juiz da Irmandade Muçulmana”. Essa instituição de 15 membros é a máxima autoridade judicial do país. Também rebateu a ideia de que a aposentadoria em massa de milhares de magistrados prejudicará o funcionamento da justiça no Egito, que já está paralisada com, literalmente, milhões de casos em todo o sistema de tribunais do país. “Por outro lado, o trabalho ficará mais ágil com a designação de quadros frescos”, destacou.
Shirabi também se colocou contra a crítica de que o Conselho Shura não tem autoridade legítima para adotar uma nova lei. “A Constituição aprovada há pouco lhe dá o direito de legislar até que haja uma nova câmara baixa”, afirmou. “Toda declaração contrária tem como meta manter a corrupção do regime de Mubarak, que elevou a idade de aposentadoria de 60 para 70 anos com o objetivo expresso de manter os juízes favoráveis”, pontuou.
O primeiro enfrentamento entre o Poder Judiciário e as forças islâmicas do Egito começou há quase um ano, quando o Alto Tribunal Constitucional declarou que a lei que permitiu organizar as primeiras eleições após a queda do regime de Mubarak, realizadas no final de 2011 e começo de 2012, era inconstitucional.
No dia seguinte, 15 de junho de 2012, o então governante Conselho Supremo das Forças Armadas ordenou a dissolução da recém-eleita Assembleia do Povo, que tinha metade de suas cadeiras nas mãos do FJP, da Irmandade Muçulmana, enquanto a outra quarta parte era ocupada por outros partidos islâmicos. Muitos rivais políticos da Irmandade Muçulmana aplaudiram a dissolução do parlamento islâmico, mas especialistas legais questionaram a legitimidade da decisão do Alto Tribunal Constitucional.
“Só um terço das cadeiras do parlamento, os reservados aos candidatos independentes, era questionado do ponto de vista constitucional”, disse na época o professor de direito constitucional da Universidade do Cairo, Atef al-Banna, em entrevista à IPS. “Mas esse Tribunal não ofereceu nenhum argumento legal para dissolver toda a Assembleia”, ressaltou.
A assessora de assuntos políticos de Morsi, Pakinam al-Sharqawi, acusou, em abril, o Poder Judiciário de intervir de forma injusta na política nacional, “desde a dissolução da Assembleia do Povo no ano passado”, uma iniciativa que qualificou de “perigosa e sem precedentes”. Acrescentou que “nunca antes foi permitido a um tribunal dissolver efetivamente um parlamento eleito democraticamente por 30 milhões de cidadãos”.
No ano passado houve mais enfrentamentos, como a falida tentativa da Presidência de restabelecer a Assembleia do Povo, o êxito da tentativa de nomear um novo promotor geral, e um decreto executivo que protege temporariamente as decisões presidenciais do Poder Judiciário. Atualmente, o FJP, que tem considerável maioria no Conselho Shura, tenta fazer aprovar o controvertido projeto de lei sobre a idade de aposentadoria dos magistrados.
Por sua vez, o Judiciário pede que todo debate sobre o texto legislativo seja adiado até a eleição da nova câmara baixa. Contudo, na semana passada, para ira de muitos juízes e dirigentes da oposição, o FJP enviou para o comitê de assuntos legislativos o projeto de lei para discussão. Mas, não está claro quando, ou se, o Conselho o submeterá a votação. Enquanto isso, o Clube de Juízes do Egito, uma associação de magistrados que não simpatizam com Morsi, ameaçou suspender toda a atividade judicial se o projeto for aprovado. Envolverde/IPS