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Primavera curda irrompe nas aulas

Aula de língua curda em Derik, nordeste da Síria. Foto: Karlos Zurutuza/IPS

 

Derik, Síria, 10/9/2012 – “Quero aprender a escrever em minha própria língua”, disse Manal, uma jovem curda da Síria. Nem ela, nem seus 30 companheiros de sala, nunca estiveram tão perto de conseguir esse objetivo. Não é que Manal sofra de uma fraca formação acadêmica: esta curda de 21 anos confia que concluirá os estudos de economia durante o curso que está começando, algo que explica em um inglês quase perfeito. Contudo, sua língua materna esteve proscrita durante os quase 50 anos que o Partido Baath está no poder neste país.

Durante suas férias de verão, Manal foi ao centro de idiomas Badarhan, em Derik, 700 quilômetros a nordeste de Damasco. Trata-se de uma das duas escolas desta cidade da região de Al-Hasakah que recentemente incluiu o curdo em sua grade de cursos: três aulas semanais de uma hora, gratuitas. “Por falar inglês, conheço o alfabeto latino, e o que usamos para o curdo é praticamente idêntico”, explica a jovem antes de entrar na sala de aula recém-pintada de azul celeste.

Com a chegada do Partido Baath ao poder, em 1963, os curdos da Síria – entre dois e quatro milhões, segundo a fonte – foram submetidos a uma política de arabização sistemática, por isso a língua e o alfabeto árabes foram hegemônicos. Nesta escola, cerca de 600 jovens em breve farão prova de gramática para certificar que já estão alfabetizados em curdo.

Esta é uma língua de origem indo-europeia, que conta com duas variantes principais: o kurmanji, falado pelos curdos da Turquia e Síria e escrito em alfabeto latino, e o sorani, utilizado pelos curdos do Iraque e Irã e para cuja interpretação se usa o alfabeto árabe. Ambas variantes contam com seu próprio padrão, mas não existem uma língua e um alfabeto comuns para os mais de 40 milhões de membros deste povo.

Fátima divide a carteira com Manal, sempre e quando seus turnos como enfermeira em hospital lhe permitem ir à aula. “É importante para nós, mas, sobretudo, para as gerações futuras”, ressaltou a jovem. Ela recorda que foi suspensa da escola durante uma semana por falar curdo na sala de aula. “Falávamos às escondidas, e inclusive com alguns dos professores”, contou.

Fátima se esforça atualmente para escrever corretamente em sua língua graças a uma gramática xerocada e, sobretudo, ao entusiasmado trabalho de professores voluntários, como Hoshank. “Quando soube que precisavam de professores, não vacilei um instante. Aprendi a escrever sozinho, pela internet e de livros que tinha escondidos em casa. Hoje quero facilitar as coisas para os outros e fazer algo pelo meu povo”, afirmou o professor local.

As fronteiras coloniais traçadas em segredo entre Grã-Bretanha e França, em 1916, dividiram famílias curdas dos dois lados da linha limítrofe turco-sírio. O posterior Tratado de Sévres (1920) contemplou inclusive a criação de um Estado turco independente, mas esse ponto nunca chegou a ser cumprido. Apesar de tudo, o tráfego continua sendo mais ou menos fluido através destas fronteiras traçadas com régua e compasso. E não apenas de pessoas e bens.

Há anos, Damasco aplica um veto às principais redes sociais e sites da internet, um bloqueio ao qual se soma a errática comunicação telefônica desde o início das revoltas contra o regime de Bashar al Assad, no final de janeiro de 2011. No entanto, a maioria dos curdos da Síria goza de um acesso à internet praticamente livre de restrições, graças à rede de telefonia turca, à qual têm acesso por sua proximidade com a fronteira. Embora de forma involuntária, Ancara estaria dessa forma ajudando na coesão do povo curdo durante esta revolução cultural em curso.

Enquanto o governo de Assad está envolvido em combater a rebelião opositora em boa parte da Síria, as áreas curdas, no extremo nordeste, foram deixadas à sua sorte e começam a exercer um autogoverno de fato. Mohammad Amin Saadun, diretor da escola, explica os antecedentes desta iniciativa que, embora seja novidade em Derik, conta com precedente em praticamente todas as localidades sob controle curdo. Algumas delas estão abertas quase desde o início do levante, há mais de um ano e meio.

“Ensinamos inglês e turco há anos, mas há dois meses surgiu a oportunidade de incluir o curdo, bem como aulas de história e cultura de nosso povo”, explica Saadun, reconhecido escritor e poeta em kurmanji. Após o acordo selado em julho em Arbil, capital da Região Autônoma Curda do Iraque, entre os principais partidos políticos curdos da Síria, a gestão educacional da região está a cargo do Partido da União Democrática (PYD), a força dominante.

O Comitê de Educação trabalha contra o relógio para que o início do novo curso escolar inclua matérias como matemática ou história em kurmanji. Especulou-se que o PYD teria negociado uma espécie de pacto de não agressão com o governo de Assad. Mas seu presidente, Salah Muslim, negou categoricamente à IPS que houvesse produzido algum acordo, lembrando que “Damasco apenas não quer abrir uma frente com as minorias do país”.

No momento, a relativa calma nesta área permite que escolas como as de Derik continuem se coordenando com os gestores do PYD para consolidar um projeto que se sustenta no trabalho desinteressado de diretores e professores, e também em generosas contribuições de particulares. Mohammad Sadik cedeu gratuitamente duas salas à escola para que pudesse acomodar os novos estudantes. Apenas uns poucos conhecem seu gesto, provavelmente porque o proprietário assim prefira. “Muita gente morreu por nosso povo. Ceder à escola estes dois locais não é nada comparado com isso”, afirmou. Envolverde/IPS