Com Sorôco, sua mãe, sua filha, Guimarães Rosa ensinou-me que um poeta precisa garimpar as letras.
Tudo começou por acaso, quando peguei na estante o livro Pequenas Estórias, de um certo João Guimarães Rosa. Naquele tempo, ali pelos 11 anos de idade, eu não passava de um voraz leitor de histórias em quadrinhos. O meu quarto era povoado pelo Recruta Zero e os Sobrinhos do Capitão. Não lia Monteiro Lobato. Por outro lado, sabia de cor as façanhas do Zorro. A turma de Walt Disney também não escapava aos meus olhos famintos por quadrinhos.
Abri o livro Pequenas Estórias. O nome do conto escolhido era Sorôco, sua mãe, sua filha. Comecei a ler com muito estranhamento. Não imaginava que alguém pudesse escrever frases como “as muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar”. Ou “a hora era de muito sol – o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro”. O texto foi me conquistando por ser algo diferente de tudo o que eu havia lido até ali. Uma linguagem que soava como um toque contínuo de sinos.
O conto Sorôco, sua mãe, sua filha é a curta história de um homem da roça que leva, de braços dados, uma de cada lado, sua mãe e sua filha até o vagão de trem na estação, para uma viagem sem volta a um hospício. Assim que o trem parte, Sorôco volta sozinho para casa, a cantar a mesma canção sem sentido que sua mãe e sua filha cantavam ao partir. De repente, todo o povoado que acompanhava o sofrimento do homem desde o princípio, passa a cantar a mesma canção: “…todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram também a acompanhar aquêle canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando com êle, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação… A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dêle, de verdade. A gente, com êle, ia até aonde que ia aquela cantiga”.
E foi assim. Embalado pela “cantiga” de vanguarda do escritor-inventa-línguas Guimarães Rosa, que fui garimpando letras, pois um poeta é como um garimpeiro: vive de procurar aquilo que não perdeu.
* Publicado originalmente no suplemento Carta Fundamental, no site da revista Carta Capital.