Rio de Janeiro, Brasil, 7/4/2011 – Cientistas brasileiros traçaram, na cidade de São Paulo, o primeiro mapa de resistência a um antibiótico do Brasil, e confirmaram que o abuso gera resistência, abrindo portas para orientar políticas públicas de venda e prescrição desse tipo de medicamento. O “Mapa de Probabilidade de Risco de Resistência ao Antibiótico Ciprofloxacina em Bactérias Escherichia coli” foi realizado pelo projeto Eureqa (Epidemiologia do Uso e da Resistência Bacteriana a Quimioterápicos e Antibióticos na População). O estudo foi publicado no dia 28 de fevereiro na revista científica International Journal of Health Geographics.
A pesquisa identificou 4.372 infecções do trato urinário por bactéria E. coli, registradas em 2002 em dois centros de saúde da capital paulista, das quais 723 resultaram ser resistentes à ciprofloxacina. Cada caso foi georreferenciado em um mapa digital, segundo o domicílio do paciente. Esses dados e a delimitação de zonas de influência de cada ponto de venda do medicamento permitiram obter a densidade de consumo do medicamento.
Um modelo estatístico e o sistema de informação geográfica permitiram vincular a resistência ao antibiótico com a densidade de seu consumo e detectar as zonas da cidade com maiores e menores riscos de resistência. O estudo confirmou que com esse antibiótico, indicado para infecções urinárias femininas, e para essa bactéria “há um grau de consumo populacional que desencadeia o surgimento e a agregação à resistência à ciprofloxacina na cidade de São Paulo”, explicaram à IPS os coordenadores do estudo.
Os cientistas Antônio de Monteiro, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais; Antônio Carlos Campos Pignatari, da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, e Carlos Kiffer, do Laboratório Especial de Microbiologia Clínica do Instituto Fleury explicaram que o resultado deve ser referendado por outros estudos e em outros ambientes.
Contudo, a pesquisa “aponta com bastante certeza” que, quando um determinado antibiótico é muito consumido por uma população, os integrantes dessa comunidade em uma determinada área de consumo estão mais sujeitos a se contagiarem com bactérias resistentes. Assim, “se muitos de nossos vizinhos ou pessoas próximas estiverem usando determinado antibiótico, é possível que tenhamos uma infecção por uma bactéria mais resistente, embora não tenhamos utilizado antibióticos nos últimos tempos”, acrescentaram.
A iniciativa, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapesp), do Estado de São Paulo, tomou por base uma campanha da Organização Mundial da Saúde para combater a resistência aos antimicrobianos, a “principal arma contra as doenças infecciosas”. A OMS, que dedica ao tema este 7 de abril, Dia Mundial da Saúde, define essa resistência como o processo pelo qual um micro-organismo deixa de ser afetado por antimicrobiano ao qual antes era sensível.
“É consequência da capacidade de certos micro-organismos (por exemplo, bactérias e vírus) de neutralizar o efeito dos medicamentos, como os antibióticos. A resistência surge pela mutação do micro-organismo ou pela aquisição do gene da resistência”, explica um documento da OMS. O Eureqa busca exatamente combater esse risco. Segundo a OMS, mais de 50% das receitas de antibióticos no mundo são inadequadas. Mas é um grande negócio. Somente no Brasil, a venda de antibióticos gerou em 2009 cerca de US$ 1 bilhão.
Os autores do estudo disseram à IPS que não há muitas pesquisas com uma metodologia semelhante para avaliar a relação entre consumo da população e surgimento de resistência bacteriana a antibióticos. Embora não menos importante, a maioria dos estudos está dirigida a aspectos da “mecânica” da resistência bacteriana, acrescentaram.
“Fazendo uma comparação bem genérica, pode-se dizer que se os estudos da mecânica respondem às perguntas ‘como’ e ‘por que’ da resistência bacteriana, os estudos epidemiológicos quantitativos baseados no espaço temporal, com o Eureqa, podem responder ‘quando’, ‘onde’ e ‘quanto’ das resistências”, resumiu Antônio.
Essas perguntas ajudarão a compreender as relações entre o consumo coletivo de antibióticos e o surgimento de resistência em bactérias causadoras de doenças humanas. Aprofundar esta linha de pesquisa “com outros mapas quantitativos” pode ser útil para orientar “políticas de venda ou prescrição de antibióticos”, acrescentam os pesquisadores.
A resistência a antibióticos é um problema de saúde pública há dez ou 15 anos. No Brasil, com 190 milhões de habitantes segundo o censo de 2010, é considerada alta em comparação com nações industrializadas, disse à IPS o infectologista Alberto Chebabo, do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, do Rio de Janeiro. Existe uma “resistência elevada” tanto nas bactérias encontradas nos hospitais como nas infecções na comunidade.
“Embora não existam dados nacionais tabulados, os dados locais mostram que de 20% a 30% das bactérias que causam infecção urinária na comunidade são resistentes a pelo menos um dos antibióticos indicados para seu tratamento”, disse Alberto, chefe do serviço de doenças infecciosas e parasitárias do hospital. Nos hospitais a situação é mais grave e, segundo o médico, várias publicações documentam focos infecciosos em unidades de tratamento intensivo de todos os Estados do país, causados por bactérias sensíveis a um único antibiótico.
Isto não só aumenta a mortalidade, como também o custo dos tratamentos e o tempo de internação do paciente. Para Alberto, a causa mais importante deste problema no Brasil foi a automedicação. “Era muito comum o uso de antibióticos comprados sem receita médica e utilizados indiscriminadamente, inclusive para tratar infecções virais”, afirmou.
No ano passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) restringiu a venda de antibióticos. Desde novembro é obrigatório apresentar na farmácia receita com duas cópias, uma é devolvida ao paciente e outra fica no estabelecimento. A Anvisa tomou essa medida depois que vários focos da superbactéria KPC (Llebsiella Pneumoniae Carbapenemase), que é resistente a quase todos os antibióticos. Somente em Brasília, foram registrados 183 casos, com 18 mortes. Segundo Alberto, também é preciso conscientizar os médicos, responsáveis, em muitos casos, por receitar antibióticos que não são necessários. Envolverde/IPS