Há alguns anos, três ou quatro, temos notado uma progressiva alteração no aspecto da população prisional nos centros de detenção provisória da Capital.
A atual política habitacional do governo de São Paulo tem consistido em segregar a população de rua em celas superlotadas das unidades prisionais da Marginal Pinheiros, com mínimas condições de vida e bem-estar.
Há alguns anos, três ou quatro, temos notado uma progressiva alteração no aspecto da população prisional nos centros de detenção provisória da capital. Percebemos que ao perfil já conhecido por nós, ou seja, daqueles que majoritariamente foram acusados de crimes com violência, foi adicionada uma parcela da população sem histórico de violência e bastante debilitada, originada principalmente do centro da cidade de São Paulo.
No ano de 2010, ao levantar os dados da população presa em um dos Centros de Detenção Provisória da Marginal Pinheiros, descobrimos que um elevado número se encontra naquelas unidades pela prática de pequenos furtos ou em virtude do porte de entorpecente, especialmente o crack. Ao entrevistá-los, verificamos que suas histórias são bastante similares: são pessoas em situação de rua, dependentes de crack, acusadas da prática de pequeno furto em lojas do centro da cidade ou tentativa de roubo de transeuntes, sem o uso de armas. Com um agravante, a maioria alega ter sofrido agressão durante a abordagem policial, especialmente por parte da Guarda Civil Metropolitana.
Ficou claro para nós então que se tratava na verdade de responder à situação de gritante descaso do governo com relação à população de rua, com a sua remoção para as prisões, e, para tanto, bastaria criminalizá-la.
Solução fácil e barata para superar o déficit habitacional, os centros de detenção provisória (CDPs) são os antigos cadeiões da Segurança Pública, com capacidade para apenas 520 presos, mas que abrigam até 1.700. No caso do CDP 1 de Pinheiros, a população lá custodiada vem do centro da cidade. Esta população é extremamente vulnerável e impotente diante do aparato repressivo do Estado, e geralmente sofre agressão policial no momento da abordagem, e depois novos espancamentos nas delegacias de polícia, para então ser conduzida aos CDPs. A rota da segregação é bem conhecida daqueles frequentemente submetidos a ela.
Essa parece ser sem dúvida a forma escolhida pelo governo paulista para gerir a população de rua, ou seja, de forma autoritária e agressiva, tratando de segregá-la da população em geral e assim mantê-la distante dos olhos do público.
Com efeito, criminalizar e prender o povo de rua tem sido o caminho encontrado pelo governo paulista para retirar do centro as minorias indesejáveis. A população de rua que outrora foi vista como expressão do descaso e falta de compromisso do Estado com o bem-estar social, hoje é representada como inimiga pública, como grupo que oferece risco para a sociedade, como perturbadora da ordem e da paz social, que demanda ser reprimida e deslocada para um local distante e invisível aos nossos olhos.
Para compreender o que está ocorrendo no Estado, é necessário observar o que se passa na região central da cidade, onde a população de rua costumava concentrar-se, e também olhar para os esforços do governo para garantir moradia a todos.
Nos últimos anos, a população prisional tem alterado o seu perfil. Tradicionalmente a maior parcela de presos era composta por acusados ou condenados por crimes patrimoniais com o uso de violência, especialmente o roubo, porém hoje o tráfico de entorpecentes está assumindo uma liderança, antes desconhecida na configuração da população prisional. Não temos dados suficientes para diagnosticar as causas dessas mudanças, mas temos informações que as sugerem. De um lado, a atual lei antidrogas, a pretexto de descriminalizar os usuários de drogas entorpecentes, acabou por elevar o número de usuários e pequenos traficantes nas prisões de São Paulo.
A título de exemplo, se comparamos os dados prisionais de dezembro de 2005, ano anterior à vigência da atual lei antidrogas, com os dados de dezembro de 2010, poderemos ter uma noção dos efeitos dessa lei. Em 2005, o furto representava menos de 10% da população prisional de São Paulo, em 2010 subiu para quase 20%. O caso do tráfico é mais grave, pois passou de 10% em 2005, para 25% em 2010. (Fonte: Depen).
Este dado é significativo para corroborar a nossa suspeita inicial de que a população prisional estava mudando não só quantitativamente, como também qualitativamente. Em outras palavras, a preferência da Justiça Criminal hoje está voltada para dependentes químicos que praticam pequenos furtos e roubos para alimentar sua adição. São pessoas não violentas, com estado de saúde debilitado, sem habitação, sem escola e sem emprego, e o governo deveria investir no seu bem-estar social, mas preferiu etiquetá-la como criminosa e escondê-la da sociedade nas unidades prisionais imundas de Pinheiros.
Se compararmos esses dados com a política de construção de habitações populares, o quadro fica completo. De 2003 a 2006, foi prevista a construção de 216.730 unidades habitacionais. (Fonte: LOA’s). Porém, o governo entregou 79.073, deixando de construir 137.657 moradias, 63,52% menos do que a meta estabelecida. (Fonte: site da CDHU na internet). Entre 2007 e 2009, foi prevista a construção de 105.385 unidades habitacionais. (Fonte: LOA’s). Porém, o governo construiu apenas 57.053, deixando de construir 48.332 moradias, 45,86% menos do que a meta estabelecida. (Fonte: site da CDHU na internet).
Com essa política:
1 – O governo esconde da sociedade aqueles que ele outrora resolveu abandonar à sua própria sorte;
2 – Deixa de prover saúde, educação, moradia e ocupação para essa parcela da população;
3 – Opõe a sociedade à população de rua, apresentando estes como criminosos, perturbadores da ordem e geradores de risco social;
4 – Responde ao problema do crescente número de dependentes de crack concentrados na região central, sem envolver a saúde pública na questão;
5 – Tranquiliza os lojistas do centro, que constantemente se queixam que a presença da população de rua nos arredores de seu comércio afasta os consumidores e, portanto, reduz o lucro;
6 – “Higieniza” a cidade, oferecendo a aparência de que São Paulo conseguiu reduzir a população de rua;
7 – Resolve parcialmente o déficit habitacional, pois para esse grupo, não há mais que se preocupar em oferecer habitação.
Hoje são as minorias indesejadas os destinatários das políticas repressivas do governo, amanhã serão todos aqueles que de alguma forma representem risco ao bom funcionamento do sistema. Urge reverter esse quadro.
* José de Jesus Filho é advogado e assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional.
** Publicado originalmente no Jornal O Trecheiro – Rede Rua e retirado do site Brasil de Fato.