Os militares tramavam alguma operação para aquela noite. Foi o que concluiu um grupo de jovens visivelmente inquietos diante das manobras de dois jipes apinhados de homens armados. As roupas camufladas, os coletes balísticos e os fuzis a tiracolo tornaram-se habituais no cenário do Complexo do Alemão, ocupado há um ano pelas “forças de pacificação”. Horas antes, espalhou-se, porém, o boato de que policiais do Bope entrariam na favela disfarçados de soldados do Exército. “Não viu Tropa de Elite, não? Aquilo ali é faca na caveira, paulista. Milico não segura o fuzil dessa forma”, comenta um rapaz, ao criticar a displicência dos militares no manuseio do parafal 7,62 milímetros. “Eles deixam o fuzil recaído sobre o colo, para descansar o braço. Quem é do Bope jamais deixa de empunhar a arma. Certeza que eles vão atacar.”
A belicosa previsão não se confirma. Os soldados logo se dispersam. E a noite avança tranquila em meio aos goles de cerveja no Largo da Vivi, talvez a única opção de distração disponível para quem mora no Morro da Alvorada, uma das 13 favelas do complexo, onde vivem ao menos 65 mil habitantes da zona norte do Rio de Janeiro. De repente, uma aglomeração se forma em torno da tevê de um bar. Todos guardam silêncio, olhos vidrados na tela. Em instantes, gritam em comemoração. Efusiva. “Saiu um gol do Vasco?”, indaga um desavisado. “Não, prenderam o Coelho e o Nem. A casa caiu pra eles.” Líderes do tráfico na Rocinha, favela da zona sul carioca, ambos pertencem a uma facção criminosa rival do Comando Vermelho, que dominava o Complexo do Alemão e continua a operar algumas bocas de fumo na comunidade.
A Rocinha será a próxima favela a ser ocupada por uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Antes da prisão de Nem, o governo fluminense temia o confronto e tratou de solicitar ao Ministério da Defesa o envio de fuzileiros navais e blindados da Marinha para dar suporte à intervenção, prevista para o domingo 13. Após o êxito da operação que frustrou a fuga de Nem, descoberto no porta-malas de um carro e escoltado por policiais da banda podre, talvez não seja necessário mobilizar tamanho aparato. Tampouco convocar 3 mil homens das Forças Armadas e das polícias, como ocorreu em novembro do ano passado, na ocupação do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro. À época, a opinião pública aplaudiu a reconquista dos territórios, ocorrida poucas semanas após uma série de ataques em ônibus atribuídos ao Comando Vermelho.
Entre 27 e 29 de novembro de 2010, o Ibope ouviu mil moradores do estado do Rio e constatou que 88% dos entrevistados se mostraram favoráveis às incursões da polícia nos morros cariocas. O governo fluminense também festejou o que classificou como o “mais duro golpe” ao tráfico de drogas na capital fluminense. De fato, em apenas uma semana a Polícia Militar anunciou a prisão de 124 criminosos e a apreensão de 215 armas de diferentes calibres, incluindo metralhadoras, fuzis (parte deles pertencente ao arsenal das Forças Armadas) e até uma bazuca de 1,6 metro de comprimento, capaz de destruir blindados. Mas as conquistas parecem ter ficado por isso mesmo. Luciano Martiniano da Silva, o Pezão, e Fabiano Anastácio da Silva, o FB, chefes do tráfico na região, continuam foragidos. Talvez da mesma forma que Nem tentou fazer, com a ajuda de policiais corruptos. O tráfico permanece ativo nas favelas, ainda que sem a ostentação de fuzis ou armas de grosso calibre. Vez por outra, os soldados da força de pacificação se envolvem em trocas de tiro com os criminosos.
Após os vexatórios episódios de corrupção envolvendo policiais em incursões no Complexo do Alemão, o Exército assumiu de vez o patrulhamento da favela. Pudera: em fevereiro de 2011, a Operação Guilhotina, da Polícia Federal, prendeu 28 suspeitos, em sua maioria policiais civis e militares, -acusados de promover uma verdadeira caça ao tesouro do tráfico. Além de se apropriar de armas, dinheiro e drogas, eles são suspeitos de repassar informações a traficantes sobre operações em troca de propina. Também são investigados por associação com milícias e por ter roubado pertences de -moradores em meio a operações nos morros.
Em tese menos suscetíveis à corrupção, os soldados do Exército assumiram o controle exclusivo das operações, mas estão em constante atrito com os moradores. São recorrentes as denúncias feitas contra militares por abuso de autoridade e agressões. Nas quatro auditorias da Justiça Militar no Rio de Janeiro, há uma centena de processos contra civis acusados de desacato à autoridade militar. Sempre que um confronto com moradores ganha espaço na mídia, o comando militar se apressa em desmentir os denunciantes ou acusá-los de provocar conflitos a mando do tráfico. Mas nem sempre a desculpa cola.
Um casal, por exemplo, foi preso por desacato quando o rapaz se recusou a descer da moto em uma blitz do Exército. Segundo a acusação, ele teria ofendido os soldados que fizeram a abordagem. Acabou absolvido pelo juiz auditor Carlos Henrique Silva Reineger, que considerou o fato de ele já ter se submetido a uma revista anterior, na mesma blitz, menos de 30 minutos antes da nova abordagem. “O caso parece singelo, mas a verdade é que estão prendendo todo mundo por desacato sem qualquer justificativa plausível. As vítimas não são bandidos, até operários de obras do PAC foram presos. Passaram dias na carceragem até serem liberados. Não se trata de desacato, e sim de abuso de autoridade”, ataca Márcia Honorato, coordenadora da Rede- de Comunidades e Movimentos contra a Violência e integrante do Conselho de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro. “Além das prisões arbitrárias, das revistas vexatórias, os soldados agem com violência e são capazes de lançar bombas de efeito moral por conta de coisas banais, como o som alto do carro ou uma festa que ultrapassou o horário determinado por eles. É uma ditadura.”
Um caso emblemático ocorreu na madrugada do sábado 5. Cerca de cem moradores festejavam o aniversário do bombeiro hidráulico Deyvison Oliveira quando um regimento do Exército chegou à festa e pediu para baixar o som. “Ninguém se opôs a isso, mas depois eles mudaram de ideia e decidiram que a festa tinha de acabar. Amigos meus começaram a discutir e eles reagiram com granadas de efeito moral e balas de borracha com espingardas calibre 12. Um dos tiros acertou meu supercílio, se fosse um centímetro abaixo, eu perdia a vista”, conta o aniversariante.
Ao menos 20 pessoas ficaram feridas, em sua maioria mulheres. “Quando começou a discussão, boa parte dos homens saiu para ver o que estava acontecendo. Dentro do salão só ficaram as meninas. Mesmo assim, eles entraram e explodiram as bombas, e atiravam em quem saía”, conta Vanusa Ribeiro, de 24 anos, que ficou com o pé queimado. “Depois da confusão, pedimos socorro, porque a gente tava sangrando muito. Mas eles nos chamavam de ‘piranhas’ e mandavam a gente se virar. Fui socorrida por vizinhos. Tomei oito pontos no joelho, por dentro e por fora”, completa a amiga Vanessa Batista da Silva, de 23 anos.
Em outro episódio semelhante, ocorrido durante uma festa no início de setembro, moradores entraram em confronto com os militares munidos de pedras e fogos de artifício. Dias depois, soldados da 9ª Brigada de Infantaria do Exército se envolveram num intenso tiroteio com traficantes, que, segundo a versão oficial, se aproveitaram da situação para tentar retomar o comando do Complexo do Alemão. O general Adriano Pereira Júnior, do Comando Militar do Leste, acusou os criminosos de insuflar os moradores da comunidade contra os militares, sobretudo após o anúncio da permanência do Exército na favela até junho de 2012. “Houve ordem para que soldados do tráfico tentassem se comportar de forma a causar tumulto e desconforto à tropa”, afirmou à época.
Mas quem se diz vítima de abusos dos militares garante não ter qualquer relação com o tráfico. “Eu sou açougueiro, trabalho, tenho carteira assinada, só estou parado agora porque estou de licença médica, me tratando de uma lesão na mão”, defende-se Denílson Borges, que foi espancado por ao menos oito soldados na noite de 24 de setembro. As cenas da agressão foram registradas em vídeo e divulgadas pelo jornal Nova Democracia. “Estava voltando de uma festa, quando a molecada provocou os militares. Os garotos saíram correndo e eles vieram tirar satisfação comigo, que não tinha nada a ver com a história. Começamos a discutir e um deles jogou spray de pimenta no meu rosto. Revidei com um soco e fui espancado por oito, na maior covardia. Minha mulher gritava pedindo para eles pararem. Meus filhos viram tudo da janela de casa. Fiquei no chão, levando chutes nas costas, na cabeça. Perdi até uma unha do pé com uma botinada deles. Depois eles me largaram lá. Só me prenderam no dia seguinte porque eu disse que iria denunciá-los.”
Diante do crescente número de denúncias de abusos, o Ministério Público Federal convocou uma audiência pública para o próximo dia 18 de novembro. O grupo de trabalho da Promotoria que acompanha o trabalho da força de pacificação quer ouvir as queixas dos moradores e mostrar como eles podem fazer denúncias. “Por enquanto, temos três inquéritos abertos contra militares. Ouço muita reclamação, mas a maioria dos moradores não registra queixa. Quero esclarecer que eles têm espaço aberto para isso e podem pedir sigilo se temem alguma represália”, diz a procuradora Gisele Porto.
É evidente que o fim da guerra do tráfico e a presença do Exército agrada a muitos moradores, como o segurança José Gilmar Campelo. “Moro aqui há mais de 40 anos e nunca tive problema, nem com assalto nem com nada. Mas, de fato, a favela está mais tranquila. Às vezes, os soldados se excedem, mas sabe como é… Tem gente que extrapola, bebe demais, fala o que não deve.” Também há quem frustrou as expectativas de melhora. “Quando o Exército entrou aqui, eu pensei: ‘Graças a Deus, vou ter um pouco de sossego’. Então eles começaram a agredir todo mundo, até na porta da minha casa jogaram bomba de gás. Fiquei sufocada, moço. Não quero nunca mais passar por aquilo”, comenta a dona de casa Severina Silva Fernandes, de 64 anos. “Foi uma decepção.”
Para João Rodrigues Arruda, procurador- da Justiça Militar aposentado, os soldados não estão preparados para lidar com a população civil. “O militar é adestrado para combater, e não para fazer policiamento. Ele talvez não entenda que fazem parte da cultura da favela o churrasquinho em cima da laje, o baile funk, a festa com som alto. Peca ao querer impor a disciplina do quartel”, afirma Arruda, autor do livro O Uso Político das Forças Armadas (editora Mauad). “A Constituição é clara ao dizer que compete às polícias estaduais cuidar da segurança pública. O Exército só poderia ser convocado para essa função se o presidente da República decretasse estado de sítio ou uma intervenção federal. Essa é uma avaliação que o próprio Estado-Maior do Exército já manifestou publicamente. Mas, desde a época do Império usam militares para outras funções. Agora, em vez de caçar escravo fujão, os soldados combatem traficantes, abrem estradas, fazem campanhas de vacinação. Como diz um amigo, que é juiz militar: ‘Deus queira que os garis não entrem em greve, senão os militares vão receber uma vassoura’.”
Mesmo nas comunidades com Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) sem a presença de soldados do Exército são recorrentes os relatos de abusos cometidos por policiais, como CartaCapital- mostrou em julho deste ano (“Paz ou medo?”, edição 655). “O problema é que tanto os policiais como os militares tratam os moradores como a população civil de um exército inimigo. Todos são suspeitos, tratados com desconfiança. A UPP veio para acabar com os conflitos armados nas favelas cariocas, mas impõe uma rotina militarizada que reforça a lógica da guerra”, comenta Rafael Dias, pesquisador da ONG Justiça Global. “Não há diálogo- nem qualquer forma de interlocução- com a -população. Tudo é imposto de cima para baixo. Além disso, não há limites claros do que o agente do Estado pode ou não fazer numa ocupação dessas. Daí essa confusão, em que, a pretexto de garantir segurança, militares interferem no modo de vida dessas pessoas. O resultado é péssimo.”
* Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.