Qualidade nutricional dos solos do Cerrado: um outro ponto de vista

Frutos do Cerrado.

O Cerrado é um ecossistema cujos solos apresentam, de forma geral, baixa disponibilidade de nutrientes para as plantas (Lepsch 2002; Haridasan 2005; 2008). Esta questão é bastante discutida pela comunidade científica e amplamente divulgada em revistas de circulação nacional e internacional. A informação de que os solos do Cerrado são nutricionalmente pobres também é largamente transmitida ao grande público, principalmente por meio de publicações e de programas de extensão promovidos por instituições públicas (universidades e empresas ligadas ao governo) e empresas privadas relacionadas ao agronegócio. De acordo com tais divulgações, no Cerrado há predomínio de solos cujas análises químicas apontam baixo pH (elevada acidez), alta concentração de alumínio (tóxico para a maioria das plantas cultivadas) e reduzida disponibilidade de nutrientes como o nitrogênio, o fósforo e o potássio, que são essenciais para o crescimento das plantas. Assim, expressivas quantidades de calcário e de fertilizantes normalmente são recomendadas e aplicadas para tornar tais solos produtivos para as culturas agrícolas (Lepsch 2002).

Apesar disso, a qualidade nutricional dos solos do Cerrado é uma questão que parece depender muito do ponto de vista. Haridasan (2008) destacou que o conceito de deficiência nutricional, bem estabelecido na agricultura, não deve ser estendido indiscriminadamente às plantas nativas em ecossistemas naturais. Nesse contexto, quando a disponibilidade de nutrientes é avaliada com base em critérios agronômicos, ou seja, em relação aos requerimentos nutricionais de plantas cultivadas tais como a soja, o milho, o sorgo, o algodão, entre outras, os solos do Cerrado realmente são pobres em nutrientes e muitas vezes necessitam da aplicação de fertilizantes para que tais culturas apresentem boa produtividade. Por outro lado, quando a disponibilidade de nutrientes é avaliada com base nos requerimentos nutricionais das plantas nativas do Cerrado, não é prudente afirmar que seus solos são pobres.

Há diversas evidências indicando que a maioria das espécies de plantas lenhosas nativas do Cerrado está adaptada à disponibilidade natural de nutrientes dos solos sobre os quais elas crescem, incluindo o fato de sua própria existência e manutenção temporal. Explorando a quantidade de nutrientes naturalmente disponíveis no solo, as espécies de plantas nativas do Cerrado conseguem completar todo o seu ciclo de vida, o que é um indicativo de que a qualidade nutricional do solo não é fator limitante para sua sobrevivência e perpetuação ao longo do tempo. Além disso, mesmo sobre solos pobres do ponto de vista agronômico, é conhecido que a vegetação lenhosa das formações savânicas (vegetação mais aberta) do Cerrado tem grande capacidade de resistir à ocorrência de distúrbios, tais como a entrada de fogo e a derrubada, e de rapidamente se recuperar após as perturbações.

Solo do Cerrado.

A elevada riqueza de espécies vegetais no bioma Cerrado é um fator que reforça a opinião de que os solos deste ecossistema não são pobres em nutrientes em relação às necessidades das plantas nativas. Atualmente, estão descritas e catalogadas mais de 12.300 espécies nativas de plantas (Mendonça et al. 2008) e a porcentagem de espécies endêmicas (que não ocorrem em outros lugares) chega a 44% (Silva & Bates 2002). Estes fatores contribuíram para que o bioma Cerrado fosse incluído entre os 34 ecossistemas prioritários para a conservação no planeta Terra (Mittermeier et al. 2004).

A concentração de nutrientes nos tecidos vegetais (folhas, por exemplo) das espécies lenhosas do Cerrado também pode indicar baixos requerimentos nutricionais. Os resultados do estudo conduzido por Haridasan (2005) em áreas de cerrado sentido restrito, uma formação savânica do bioma Cerrado com cobertura arbórea variando entre 5% e 70% (Ribeiro & Walter 2008), indicam que de forma geral as espécies lenhosas mais abundantes são justamente as que apresentam as menores concentrações de nutrientes nos tecidos vegetais. Segundo Haridasan (2005), este padrão indica que as espécies mais abundantes requerem menores quantidades de nutrientes em relação às menos abundantes, o que pode ser uma vantagem competitiva em relação às propriedades químicas normalmente observadas nos solos do Cerrado.

Tomadas em conjunto, as evidências aqui apresentadas sugerem que a disponibilidade de nutrientes nos solos do bioma Cerrado é uma questão que deve ser avaliada e discutida com cautela, principalmente em relação ao ponto de vista que a classifica. Os solos do Cerrado podem ser pobres em nutrientes quando comparados aos solos de outros ecossistemas brasileiros e em relação aos requerimentos nutricionais de plantas cultivadas, mas não o são em relação à vegetação nativa, que parece estar muito bem adaptada à disponibilidade natural de nutrientes. Sugerimos que futuras discussões relacionadas ao estado nutricional dos solos do bioma Cerrado incluam os dois pontos de vista aqui destacados (agronômico e ecológico), principalmente no meio acadêmico.

Bibliografia

Haridasan, M. 2005. Competição por nutrientes em espécies arbóreas do cerrado. In: Scariot, A.; Sousa-Silva, J.C. & Felfili, J.M. (Orgs.). Cerrado: ecologia, biodiversidade e conservação. Brasília: Ministério do Meio Ambiente. p.167-178.

Haridasan M. 2008. Nutritional adaptations of native plants of the cerrado biome in acid soils. Brazilian Journal of Plant Physiology 20(3): 183-195.

Lepsch, I.F. 2002. Formação e conservação dos solos. São Paulo: Oficina de Textos. 178p.

Mittermeier, R.A.; Gil, P.R.; Hoffmann, M.; Pilgrim, J.; Brooks, T.; Mittermeier, C.G.; Lamoreux, J. & Fonseca, G.A.B. 2004. Hotspots revisited: Earth’s biologically richest and most endangered terrestrial ecoregions. Mexico City: CEMEX. 392p.

Mendonça, R.C; Felfili, J.M.; Walter, B.M.T.; Silva Júnior, M.C.; Rezende, A.V.; Filgueiras, T.S.; Nogueira, P.E. & Fagg, C.W. 2008. Flora Vascular do Bioma Cerrado. In: Sano, S.M.; Almeida, S.P. & Ribeiro, J.F. (Eds.). Cerrado: ecologia e flora. Brasília: Embrapa Informação Tecnológica. p.421-1.279.

Ribeiro, J.F. & Walter, B.M.T. 2008. As principais fitofisionomias do Bioma Cerrado. In: Sano, S.M.; Almeida, S.P. & Ribeiro, J.F. (Eds.). Cerrado: ecologia e flora. Planaltina: Embrapa-CPAC. p.151-212.

Silva, J.M.C & Bates, J.M. 2002. Biogeographic Patterns and Conservation in the South American Cerrado: A Tropical Savanna Hotspot. BioScience 52(3): 225-233.

* Henrique Augusto Mews é biólogo, doutorando em Ciências Florestais pela Universidade de Brasília (UnB) ([email protected]). Divino Vicente Silvério é biólogo, doutorando em Ecologia pela UnB ([email protected]). José Roberto Rodrigues Pinto é engenheiro florestal, doutor em Ecologia e professor do Departamento de Engenharia Florestal da UnB ([email protected]).