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Quando a vida depende de um genérico

Medicamentos patenteados limitam o acesso de pacientes aos tratamentos necessários. Foto: Kristin Palitza/IPS

Cidade do Cabo, África do Sul, 21/11/2011 – Os governos devem utilizar os mecanismos legais à sua disposição para promover a redução ou importação de medicamentos genéricos em seus países, afirmam especialistas sul-africanos. As patentes farmacêuticas fazem subir os preços dos medicamentos e encarecem o tratamento dos pacientes. Isto limita o acesso aos serviços médicos, especialmente nos países em desenvolvimento, onde o peso da doença é grande e o orçamento para a saúde é baixo, acrescentam.

Os governos podem voltar à Declaração de Doha, a respeito do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (Adpic) e Saúde Pública, que foi assinada há dez anos pelos países-membros da Organização Mundial do Comércio na capital do Catar. A Declaração existe para garantir que as patentes não afetem a capacidade dos países de garantir o direito à saúde.

“Países como África do Sul podem interpretar o Adpic como lhes convier. Podem sancionar leis para que haja menos patentes e promover a produção de remédios genéricos para universalizar a disponibilidade de medicamentos”, explicou a responsável por inovação e acesso da organização Médicos Sem Fronteiras na África do Sul, Mara Kardas-Nelson. A disponibilidade de medicamentos genéricos tem consequências drásticas em matéria de saúde pública.

“Quando foram produzidos antirretrovirais genéricos para o tratamento de pacientes com o vírus HIV (causador da aids), o custo do tratamento baixou rapidamente de US$ 10 mil por paciente ao ano para cerca de US$ 600”, disse Kardas-Nelson. “Permite que milhões de pessoas tenham acesso aos medicamentos”, acrescentou. Quando o Adpic foi assinado em 1995, as companhias farmacêuticas puderam solicitar patentes de 20 anos para seus medicamentos, prazo durante o qual não se podia produzir versões genéricas desses medicamentos.

Isto reduziu de forma drástica a disponibilidade de genéricos. Contudo, seis anos depois, quando foi assinada a Declaração de Doha, os governos puderam superar a rígida regulação de patentes para proteger o acesso de seus cidadãos à saúde. Surpreende, então, que pouquíssimos países em desenvolvimento, incluída a África do Sul, tenham reformado sua lei de patentes para aproveitar as possibilidades oferecidas pela Declaração de Doha.

Isto se deve principalmente à pressão dos laboratórios, bem como dos Estados Unidos e da União Europeia, onde são produzidos muitos dos medicamentos patenteados, afirmam especialistas. “Os países não devem aceitar a pressão”, alertou a pesquisadora Catherine Tomlinson, da organização Treatment Action Campaign (Campanha de Ação para o Tratamento). Além disso, a África do Sul protege as patentes mais do que o estipulado pelo Adpic, acrescentou.

“Por outro lado, Brasil, Índia e Tailândia aproveitaram a flexibilidade outorgada pelo Adpic para conter o excesso de patentes e promover a saúde pública”, explicou Tomlinson. “Enquanto a África do Sul concedeu 2.442 licenças em 2008, no Brasil foram apenas 278 entre 2003 e 2008”, acrescentou. Publicamente, o governo da África do Sul confirmou a necessidade de medicamentos genéricos.

Em uma declaração conjunta com Brasil e Índia, o presidente sul-africano, Jacob Zuma reconheceu no começo deste ano que o impacto da propriedade intelectual sobre a saúde, a disponibilidade de remédios e os preços pode diminuir se aumentar a produção de genéricos. Entretanto, seu compromisso, por enquanto, é da boca para fora. “Queremos que Zuma respeite seu compromisso. Não vemos sinais concretos de que o governo tomará medidas para reformar a lei de patentes. Falta vontade política”, lamentou Tomlinson.

A Campanha de Ação pelo Tratamento e a organização Médicos Sem Fronteiras também reclamam uma revisão rígida e independente da aplicação das patentes, bem como a possibilidade de terceiros poderem se opor à aprovação de licenças pendentes assim como durante o primeiro ano de sua concessão.

A África do Sul deveria fazer uso de seu direito de conceder licenças obrigatórias no contexto da Declaração de Doha para habilitar a disponibilidade de versões genéricas de medicamentos patenteados nos casos em que os preços são proibitivos, dizem as organizações. Ao contrário de outras nações em desenvolvimento, como a Tailândia, este país nunca utilizou essa opção.

A Mediscor, companhia que administra benefícios farmacêuticos na África do Sul, informou, em sua avaliação de 2010, que o gasto em medicamentos aumentou 25,2% entre 2008 e 2010, enquanto o uso de remédios aumentou apenas 5,8%. Para pacientes com problemas crônicos, que precisam de medicação permanente para viver, a disponibilidade de genéricos pode ser a diferença entre a vida e a morte.

Nokwanda Pani é portadora do vírus HIV e vive no assentamento de Khayelitsha, o terceiro em tamanho da África do Sul, perto da Cidade do Cabo. Pani recebe antirretrovirais desde 2005. Quatro anos depois, criou resistência aos medicamentos e começou a ser tratada com remédios de segunda geração. Agora, se preocupa com o que acontecerá se seu organismo deixar de responder à medicação atual. Na África do Sul, o tratamento de terceira geração só está disponível no setor privado ao custo de US$ 4,2 mil por paciente ao ano, quantia que Pani não pode pagar.

Sem a competição dos genéricos, o custo dos antirretrovirais de segunda e terceira gerações podem custar até 20 vezes mais do que os de primeira, confirmou a Médicos Sem Fronteiras. A diferença também se aplica a outros medicamentos, como os utilizados contra câncer, tuberculose, diabetes e pressão alta. “Como dependo da saúde pública, não tenho acesso ao tratamento de terceira geração. Se voltar a apresentar resistência, tudo acabou para mim”, disse Pani. Para ela, tudo se resume em uma pergunta: “Por que o governo prioriza o lucro das companhias farmacêuticas acima das nossas vidas?”. Envolverde/IPS