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Quando o governo é inimigo de trabalhadores e indígenas

A atuação da polícia em relação aos protestos indígenas é cada vez mais questionada na África do Sul. Foto: Thapelo Lekgowa/IPS
A atuação da polícia em relação aos protestos indígenas é cada vez mais questionada na África do Sul. Foto: Thapelo Lekgowa/IPS

 

Sydney, Austrália, 2/5/2014 – A violência do Estado contra a dissidência política é cotidiana em cidades como Cairo, Bangcoc e Kiev, onde a polícia reprime a cidadania que deveria proteger. Mas em alguns países em desenvolvimento as forças da ordem atacam também a oposição indígena à extração de recursos naturais que os governos impulsionam em aliança com empresas privadas.

Povos indígenas de todo o mundo sofrem o despojo de suas terras diante do avanço da indústria extrativista. Quando fracassam as vias regulares para resolver as discrepâncias com as autoridades, os ativistas enfrentam o uso desproporcional da força, a detenção ilegal e a penalização de seus líderes. Por outro lado, os autores da violência de Estado gozam, invariavelmente, de impunidade.

Mandeep Tiwana, da Aliança Mundial para a Participação Cidadã Civicus, uma organização com sede em Johannesburgo, disse à IPS que a vítima final é a confiança das pessoas no governo representativo. “O descumprimento por parte do Estado – por não cobrar explicações das forças de segurança e de outras entidades estatais e não estatais poderosas pela violação das liberdades democráticas e do direito à expressão da dissidência legítima – solapa severamente a democracia”, afirmou.

A polícia sul-africana matou 34 mineradores em uma greve de 2012, em um tiroteio na mina de platino da empresa britânica Lonmin, na localidade de Marikana. São muitos os que veem o caso como um ponto de inflexão do estado atual da brutalidade estatal e empresarial. No mesmo ano, as forças públicas do Panamá utilizaram balas de borracha e gás lacrimogêneo contra indígenas ngäbe e buglés que se manifestavam contra a mineração de cobre em seus territórios, com saldo de três mortes. Em maio de 2012, a polícia do Peru matou dois dos manifestantes que protestavam contra o dano ambiental e a falta de benefícios da mina de cobre Tintaya, na província de Espinar e propriedade da empresa suíça Xstrata.

O Dia Internacional dos Trabalhadores, comemorado no dia 1º, é uma lembrança da opressão que sofrem indígenas e trabalhadores de todo o mundo.

Na região do Pacífico a extração de minerais e gás, dominada por transnacionais, é protegida por esquadrões policiais móveis. Isso é comum em Papua Nova Guiné, onde 28% da população vive abaixo da linha da pobreza. Nos últimos anos, a polícia desalojou com violência os moradores próximos da mina de ouro Porgera, na província de Enga, propriedade majoritária da firma canadense Barrick Gold, e matou um trabalhador contrário ao projeto de gás natural liquefeito nas terras altas, conhecido como PNG LNG.

O protesto pode ser o último recurso dos que têm menos influência sociopolítica. Na África do Sul, “aumentaram as greves e os protestos do fornecimento de serviços, muitas nas comunidades mineiras impactadas”, disse à IPS David van Wyk, membro da Fundação Bench Marks. Quando as autoridades não consideram as queixas, os problemas sociais são deixados para a polícia, “o que provoca o aumento da brutalidade policial”, apontou.

A violência de Estado reflete o papel fundamental que têm os recursos naturais no poder nacional, geopolítico e militar. Muitos países, entre eles Papua Nova Guiné, Guatemala e Nigéria defendem seu direito soberano aos minerais do subsolo, o que pode prejudicar o direito dos povos indígenas aos seus territórios ancestrais.

Contudo, com a repressão dos protestos, os países em desenvolvimento também atuam em favor dos interesses neoliberais dos grupos transnacionais e dos grupos de interesses externos. Na localidade sul-africana de Marikana, a violência estatal em nome da segurança permitiu que a mina Lonmin permanecesse alheia à responsabilidade direta na violação de direitos humanos.

Na Nigéria, 50 anos de exploração petroleira no Delta do Níger, por empresas como Shell e Chevron Texaco em aliança com o Estado, enriqueceram as elites estrangeiras e locais. O petróleo gerou mais de US$ 350 bilhões em renda para o Estado, enquanto 69% dos habitantes ogonis e ijaws vivem na pobreza. As enormes quantias recebidas pelo Estado nigeriano asseguraram a dotação de recursos da Força Especial Conjunta Militar, dedicada a proteger as instalações petroleiras e sufocar as comunidades alienadas pela marginalização.

Esquadrões móveis da polícia de Papua Nova Guiné são financiados há décadas pelo governo australiano, que tem participações em projetos extrativistas, com a empresa conjunta Exxon Mobil PNG LNG.

Kristian Lasslett, da organização Internacional State Crime Initiative (Iniciativa Internacional Contra os Crimes de Estado), com sede em Londres, afirmou que a união da oposição local representa uma ameaça para a aliança público-privada em Papua Nova Guiné. “Acabaria com a estrutura de oportunidades aproveitada por um setor dos investidores estrangeiros que ignoram as leis nacionais e os costumes locais, e seria um golpe para os empresários nacionais que realizaram com eficácia apropriações ilegais de terras e corruptas transações de recursos”, pontuou.

As empresas Barrick Gold e Esso Highlands têm contratos para dar apoio às unidades policiais com veículos, alojamento, alimentação e combustível. As cláusulas que indicam que o apoio está condicionado ao cumprimento de normas internacionais de conduta pelos organismos estatais raramente são aplicadas. Lasslett explicou que as empresas “adotam a política do ‘nada ouço’ quando se trata de violência de Estado”.

Após a queda das torres gêmeas em Nova York, em 2011, também foram reforçadas as medidas antiterroristas para lidar com os protestos. O governo da Guatemala utilizou a ameaça do terrorismo para declarar estado de sítio em maio de 2013, após as manifestações contrárias à mina de prata Escobal, no sudeste do país. Isso preparou o caminho para a suspensão das liberdades civis e a introdução da lei marcial.

A justiça para os setores marginalizados é um enorme desafio em uma época de crescente poder ilegítimo, como descrito no informe Estado do Poder, do Transnational Institute (TNI), deste ano. O documento diz que a influência empresarial sobre os governos é um dos motivos de o Estado não prestar conta de suas ações aos governados, mesmo nos países democráticos.

“As corporações, por meio dos acordos comerciais e de investimento e da captura empresarial das instituições políticas também teceram uma rede de impunidade que protege seus ganhos e sua responsabilidade em matéria de direitos humanos e abusos contra o ambiente”, disse à IPS a investigadora do TNI Lyda Fernanda. Muitos Estados onde há opressão não cumprem os códigos internacionais de conduta policial nem com seu dever de proteger os direitos humanos dos cidadãos.

Segundo Tiwana, o direito internacional deve contar com o apoio da legislação nacional e de organizações independentes de direitos humanos e comissões de responsabilidade da polícia. “A lei favorece os que têm grandes reservas de dinheiro e os que têm a capacidade e os contatos para apoiar suas afirmações com as formas de evidência que os tribunais aceitem”, ressaltou Lasslett. “Isto não quer dizer que as comunidades não possam ganhar nos tribunais, mas não é um campo em que têm muitas vantagens”, acrescentou.

Lasslett acredita que quando a impunidade se apoia na corrupção e em procedimentos inadequados de denúncias contra a polícia, a forma mais eficaz de defesa dos direitos são os movimentos sociais fortes. Os povos indígenas, “a arma mais poderosa que têm é sua própria história, cultura e costumes”, enfatizou. Envolverde/IPS