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Quando o tribunal é a fronteira

A parte da casa dividida correspondente aos colonos israelenses, vista a partir do lado da palestina Filistin Hamdallah, em Jerusalém oriental. Foto: Pierre Klochendler/IPS

 

Jerusalém, Israel, 21/9/2012 – Filistin Hamdallah parece desorientada, caminhando entre os móveis espalhados pelo quintal. À primeira vista, parece que vai se mudar, mas a roupa recém-lavada e pendurada em arames mostra que esta palestina e sua família não têm intenções de abandonar sua casa em Jerusalém oriental. Sua relação com os vizinhos judeus é um forte exemplo do que podem ser as divisões em Jerusalém.

Há duas semanas colonos se instalaram, escoltados por policiais israelenses. “O Tribunal Distrital determinou que cabe aos judeus nos expulsar de partes de nossa casa”, conta Hamdallah, mãe de cinco filhos. “Esta casa nunca pertenceu a eles”, acrescenta Yishai Fleisher, um vizinho judeu de Ma’aleh Ha-Zeitim, um complexo fortificado vizinho. “Eles roubara da gente e os estamos expulsando. Somos titulares de direitos sobre esta propriedade”, afirma.

Quando judeus e árabes travaram a primeira luta de seu histórico conflito pela soberania da cidade, durante a Guerra da Independência de Israel (1948), Jerusalém oriental (que inclui a parte antiga) foi conquistada pela Jordânia.

Os judeus residentes em Jerusalém foram obrigados a abandonar suas casas e mudar para a zona ocidental da cidade, então controlada pelo nascente Estado. Posteriormente, o lugar sobre o qual se ergue a polêmica casa foi inscrito no Escritório de Registro de Terras da Jordânia. Em 1952, as autoridades jordanianas concederam aos Hamdallah direitos de propriedade por tê-lo ocupado antes.

Em junho de 1967, quando Israel capturou a parte oriental da cidade, impôs unilateralmente suas leis, sua jurisdição e administração aos bairros palestinos. Mas a comunidade internacional nunca perdoou o Estado judeu por anexar “de fato” Jerusalém oriental.

Desde então, no centro histórico da cidade santa e nos bairros palestinos vizinhos, organizações judias direitistas travam uma batalha pela terra e pelas propriedades abandonadas pelos judeus em 1948, servindo-se das leis israelenses.

Em 1990, Irving Moskowitz, magnata judeu norte-americano, comprou a propriedade – legalmente, segundo as diretrizes israelenses – de centros judeus de ensino religioso.

Estas organizações compraram durante o regime otomano a terra onde agora fica a controvertida casa, muito antes da criação do Estado de Israel. Em 1967 apresentaram uma demanda. Em consequência, o Tribunal Distrital declarou nulo e sem efeito o registro jordaniano de terras.

Em 1992, os emissários de Moskowitz apresentaram uma petição para despejar os Hamdallah. Em 2005, o tribunal determinou que a família poderia permanecer em partes da casa construída antes de 1990. No entanto, os Hamdallah afirmavam que têm o direito de ficar com todo o imóvel.

Após dois anos de discussões judiciais, confirmou-se o veredito e, no começo deste mês, finalmente foi pedido aos Hamdallah para abandonarem um depósito anexo de 15 metros quadrados e uma pequena casa de dois cômodos que integra a propriedade. Agora, a estrutura dividida deve ser compartilhada com inquilinos judeus que integra um grupo de colonos apoiado por Moskowitz.

“Tenho raiva e medo. Mede de que fiquem com toda a casa; não temos um segundo lar. Medo pelas crianças. Para onde irão?”, pergunta Filistin Hamdallah. Sua cunhada, marido e filho já abandonaram a casa de dois cômodos onde viviam e se mudaram para outro bairro “Eles fazem o que querem”, afirma o caminhoneiro Khaled Hamdallah, marido de Filistin, mostrando um caminho sujo que leva ao depósito. “As crianças são proibidas de circularem por ali”. No quintal fica um guarda de segurança durante 24 horas por dia, sete dias por semana.

Os outros 12 membros da família palestina estendida estão proibidos de ultrapassarem o território agora delimitado por um obstáculo insignificante – instalado pelos colonos que ainda não ocuparam sua parte da casa – e que indica uma fronteira inócua após a pálida sombra de um par de árvores. Mas os bons obstáculos não necessariamente fazem bons vizinhos. Aqui, moradores palestinos e colonos compartilham igualmente o sentimento de estarem cercados e sitiados pelo outro.

“Não falamos com os colonos. É proibido aproximar-se deles. Se acontece algo, chamam a polícia”, disse Khaled Hamdallah. Fleisher acrescenta: “Vivemos com as defesas alertas contra os que prejudicam nossos direitos. É assim que vivemos em Jerusalém oriental. Se aqui alguém se comporta como um marica, é esmagado como um inseto”.

O imóvel, de um andar, está flanqueado por três lados por Ma’aleh Ha-Zeitim. Desde 2003, cerca de 90 famílias judias se mudaram para o assentamento residencial construído por Moskowitz.

A recente intrusão é parte de um programa mais amplo para expandir Ma’aleh Ha-Zeitin, que já é o maior assentamento dentro de bairros palestinos em Jerusalém oriental. “Nossos motivos estão claros. Queremos colonizar a terra de Israel, recuperar Jerusalém, reafirmar a soberania judia aqui, libertá-la das pessoas que a tomaram ilegalmente. Não iremos a parte algum. Temos poder de permanência”, disse Fleisher, desde sua sacada.

E desde a janela não se vê apenas os disputados locais sagrados judeus e muçulmanos, nem somente o antigo cemitério judeu localizado nas ladeiras do bíblico Monte das Oliveiras. Três andares mais abaixo, um clube social palestino filiado ao partido Fatah ferve de atividade. “Lamentavelmente, creio que algumas das ideias que inculcam ali nos jovens não são boas para seu futuro”, disse Fleisher.

“Nenhum palestino merece a soberania sobre nenhuma parte desta terra. Esta não é terra palestina soberana; esta é terra ancestral judia”, afirma Fleisher. “Travamos guerras para demonstrar nossa determinação. Combatemos inimigos. Continuaremos lutando, em tribunais. Mas, não estamos aqui para desalojar a todos”, acrescenta.

Nem todos. Outros bairros palestinos que antes da criação do Estado de Israel também eram habitados por judeus se tornaram vítimas de empreendimentos similares. Isto coloca em risco a perspectiva de se chegar a uma solução de dois Estados, pelo menos no tocante a Jerusalém. “Jerusalém oriental, capital de um Estado palestino? Que ideia suicida!”, exclama Fleisher. Envolverde/IPS