Washington, Estados Unidos, 1/3/2012 – Apesar de altos funcionários do governo de Barack Obama insistirem que a estratégia dos Estados Unidos no Afeganistão funciona, a polêmica desatada pela queima de exemplares do Alcorão em uma base militar alimentou os questionamentos sobre a presença de forças ocidentais nesse país. Mais de 30 pessoas morreram em protestos antinorte-americanos realizados por dezenas de milhares de pessoas nas ruas de Cabul e outras cidades afegãs, depois da divulgação da notícia de que foram encontradas partes queimadas do livro sagrado muçulmano na base aérea de Bagram.
Os pedidos de desculpas de comandantes norte-americanos e do próprio Obama não foram suficientes para devolver a calma. Dois oficiais norte-americanos, que trabalhavam em um local supostamente seguro do Ministério do Interior do Afeganistão, foram assassinados por um funcionário afegão em uma aparente represália pela queima do Alcorão. Foi o último de 36 ataques cometidos nos últimos 14 meses contra soldados estrangeiros da Força Internacional de Assistência para a Segurança (Isaf).
O fato de o atacante ter fugido sugere que teria contado com apoio de outras pessoas no Ministério. As mortes levaram o comandante da Isaf, John Allen, a ordenar a retirada temporária de todo pessoal estrangeiros dos Ministérios afegãos. Funcionários de Washington não informaram quando esta ordem seria aplicada. No dia 27, nove afegãos morreram quando um carro-bomba explodiu na entrada de uma base aérea usada pelas forças dos Estados Unidos e da Isaf na cidade de Jalalabad, cujo controle passou para mãos das forças nacionais afegãs no final de janeiro.
“Foi uma semana verdadeiramente nefasta”, escreveu Anthony Cordesman, especialista em segurança militar do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, em um longo comentário publicado no dia 27 intitulado “Afeganistão: a morte de uma estratégia”. Segundo Cordesman, “estes fatos despertam dúvidas sobre a estratégia dos Estados Unidos e o valor de continuar com o atual enfoque da guerra”.
Cordesman acrescenta que a crescente impopularidade da Isaf e dos Estados Unidos é apenas um dos fatores que colocam em xeque os fundamentos da estratégia contrainsurgente adotada pelo governo Obama em 2009. Outros são a corrupção persistente e a incompetência do governo afegão, bem como a tolerância do vizinho Paquistão com os refúgios do movimento islâmico Talibã. “Agora está claro que os prazos de retirada seguirão se acelerando, os cortes (militares) continuarão aumentando e a atenção popular continuará se afastando do Afeganistão”, afirmou Cordesman.
De fato, a maioria dos analistas em Washington prevê que estes últimos incidentes ajudarão a agilizar a saída das tropas ocidentais do Afeganistão. O cronograma da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) estabelece a retirada em 2014, deixando somente um número indeterminado de conselheiros militares e policiais. “O público norte-americano tem problemas para entender por que os Estados Unidos continuam sacrificando sangue e dinheiro no Afeganistão, quando as pessoas que estamos tratando de ajudar estão nos matando”, disse ao jornal Los Angeles Times o especialista em contrainsurgência, Andrew Exum, do Centro para uma Nova Segurança Norte-Americana.
Os Estados Unidos contam atualmente com cerca 90 mil soldados no Afeganistão, e preveem a redução deste número para 68 mil em setembro. O cronograma para a retirada das tropas remanescentes é motivo de discussão dentro da administração de Obama, do opositor Partido Republicano – em geral favorável à manutenção de tantas bases e tropas quanto seja possível – e do governante Partido Democrata, cujos legisladores pressionaram para acelerar a retirada. No entanto, a administração se mantém firme, ao menos por agora.
“Este não é um compromisso sem fim que seguirá cobrando vidas no futuro”, assegurou a secretária de Estado, Hillary Clinton, a um grupo de democratas durante uma audiência no Senado, no dia 28. “Conseguimos progressos no principal assunto que nos trouxe aqui: a segurança. Graças a nossa plataforma e a nossa presença no Afeganistão, pudemos identificar os terroristas, particularmente membros da Al Qaeda, entre eles Osama bin Laden”, afirmou. “E tivemos progressos na ajuda ao povo afegão”, acrescentou.
De sua parte, o secretário-geral da Otan, o dinamarquês Anders Fogh Rasmussen, afirmou, no dia 28: “Seguiremos apoiando ombro a ombro nossos aliados afegãos. Estamos no Afeganistão para construir estabilidade e segurança para o povo, o que interessa a nossa própria segurança”. Contudo, depois dos últimos acontecimentos, particularmente os ataques de afegãos contra forças da Isaf, a determinação de Rasmussen será posta à prova, especialmente quando os chefes da Otan se reunirem na cidade norte-americana de Chicago em maio, para discutir o futuro da estratégia.
Após o assassinato, no mês passado, de quatro soldados franceses por parte de um afegão, em uma base fortificada, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, tomou a decisão de retirar até o final de 2013 os quatro mil soldados de seu país que estão no Afeganistão, um ano antes do previsto. No dia 24, a Alemanha também anunciou que fechou um de seus postos avançados diante dos protestos contra a Otan em razão da queima do Alcorão.
Apenas alguns dias antes do incidente com o livro sagrado do Islã, outros dois soldados norte-americanos foram assassinados por um soldado afegão na província de Nangahar, fronteira com o Paquistão. Embora Estados Unidos e Otan insistam que se trata de ataques “isolados”, um informe classificado revelado pelo jornal The New York Times em janeiro indicava que esta explicação era “falsa, quando não profundamente desonesta”.
“Os incidentes mortais claramente não são raros nem isolados”, segundo o informe, elaborado em maio de 2011 por um comando norte-americano no leste do Afeganistão. “Refletem uma ameaça de homicídios sistemáticos que cresce rapidamente, com uma magnitude que não teria precedentes entre ‘aliados’ na história moderna militar”, afirma o documento.
* O blog de Jim Lobe pode ser lido em www.lobelog.com.