Algumas queimadas são inevitáveis. Mas a maioria poderia ser evitada com melhor prevenção. Os criminosos que ateiam fogo no mato seco, por fascínio com a voragem das chamas, ou para depois de se apoderar da terra queimada, nunca são punidos. A impunidade pela devastação se alastra no Brasil como o fogo que devora as reservas de biodiversidade na seca.
O fogo queima nas barbas das autoridades federais e estaduais. Zomba da incompetência e da imprevidência. Temos uma cultura que a bióloga Neiva Guedes uma vez que caracterizou como pirotécnica, ao falarmos sobre as queimadas que devoram a vegetação do Pantanal. Eu diria que é uma cultura incendiária mesmo. Parte dos crimes tolerados nessa vasta rede de impunidade que tecemos por omissão e descaso, quando não cumplicidade.
No Brasil, não temos prevenção, não há repressão ao fogo criminoso e falta capacidade para contenção do fogo. Como potência florestal, o país já deveria ter há muito uma guarda florestal, com poder de polícia, com efetivos em quantidade suficiente, capacitados e adequadamente equipados tecnologicamente para atuar na prevenção e repressão aos crimes florestais. Precisava ter brigadas de fogo florestal bem treinadas, nos três níveis da federação, também em número suficiente e bem equipadas.
As queimadas na California, no Texas, na Grécia e aqui, como as que devastam a reserva do Rola-Moça, a Serra do Cipó e vários outros pontos na Serra do Espinhaço, em Belo Horizonte, Minas Gerais, mostram que o fogo não tem relação com o grau de desenvolvimento. Mas a frequência, o número de queimadas e a impunidade dos incendiários têm clara relação com a qualidade da governança em geral e ambiental, em particular. Mesmo no Texas, é possível que tenha havido relaxamento na prevenção durante o governo do ultraconservador Rick Perry, do Tea Party, que nega a mudança climática e despreza políticas ambientais. Ele é candidato a candidato a presidente pelo partido Republicano.
Reproduzo aqui, alguns trechos de Monteiro Lobato, do Visconde de Taunay e versos de Guimarães Rosa, que mostram que a queimada é um problema antigo, parte infelizmente de nossa história. Como nos lembrou Warren Dean, ao nos contar a destruição a ferro e fogo da Mata Atlântica.
De Monteiro Lobato, em Urupês (1918):
“(…) terrível ano de seca foi aquele! O fogo lavrou dois meses a fio, com fúria infernal. O céu toldado, o ar espesso, o crepitar permanente das matas em chama, a fumarada invadindo a casa, os olhos a arderem… Um fim de mundo. E sempre notícias más, a toda hora”. (…) A “Serra da Mantiqueira ardeu como ardem aldeias na Europa e é hoje um cinzeiro imenso, entremeado aqui e acolá de manchas de verdura – as restingas úmidas, as grotas frias, as nesgas salvas a tempo pela cautela dos aceiros. Tudo mais é crepe negro”.
(…) “ninguém cuida de calcular os prejuízos de toda sorte advindos de uma assombrosa queima destas. As velhas camadas de húmus destruídas; os sais preciosos que, breve, as enxurradas deitarão fora, rio abaixo, via oceano; o rejuvenescimento florestal do solo paralisado e retrogradado; a destruição das aves silvestres e o possível advento de pragas insetiformes; a alteração para pior do clima com a agravação crescente das secas… Isto bem somado, daria algarismos de apavorar; infelizmente no Brasil subtrai-se; somar, ninguém soma…”.
Do Visconde de Taunay, em Inocência (1872):
“Nesses campos, tão diversos pelo matiz das cores, o capim crescido e ressecado pelo ardor do Sol transforma-se em vicejante tapete de relva, quando lavra o incêndio que algum tropeiro, por acaso ou mero desenfado, ateia com uma faúlha do seu isqueiro. Minando à surda na touceira, queda a vívida centelha. Corra daí a instantes qualquer aragem, por débil que seja, e levanta-se a língua de fogo esguia e trêmula, como que a contemplar medrosa e vacilante os espaços imensos que se alongam diante dela. Soprem então as auras com mais força, e de mil pontos, a um tempo, rebentam sôfregas labaredas que se enroscam umas nas outras, de súbito se dividem, deslizam, lambem vastas superfícies, despedem ao céu rolos de negrejante fumo e voam, roncando pelos matagais de tabocas e taquaras, até esbarrarem de encontro a alguma margem de rio que não possam transpor, caso não as tanja para além o vento, ajudando com valente fôlego a larga obra de destruição. (…) A incineração é completa, o calor intenso, e nos ares revoltos volitam palhinhas carboretadas, detritos, argueiros e grânulos de carvão que redemoinham, sobem, descem e se emaranham nos sorvedouros e adelgaçadas trombas, caprichosamente formadas pelas aragens, ao embaterem umas de encontro às outras. Por toda a parte melancolia; de todos os lados tétricas perspectivas”.
De João Guimarães Rosa, em Magma, do poema “Alaranjado” (1936):
“No campo seco, a crepitar em brasas,?dançam as últimas chamas da queimada,?tão quente, que o sol pende no ocaso,?bicado pelos sanhaços das nuvens,?para cair, redondo e pesado,?como uma tangerina temporã madura…”
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** Publicado originalmente no site Ecopolítica.