Na cidade paraense de Santarém, situada na confluência dos rios Amazonas e Tapajós, uma tradicional comemoração muda a rotina escolar, todo mês de setembro. As turmas do ensino fundamental da rede pública se envolvem no estudo do Sairé, a mais antiga manifestação cultural popular da Amazônia. Durante o período da festa, os rituais com elementos cristãos e indígenas, a encenação da luta dos botos Tucuxi e Cor de Rosa, e todo o impacto de mais de cem mil turistas que chegam à cidade de 297 mil habitantes viram temas de pesquisa e debate nas salas de aula. Porém, não há uma linha sequer sobre esse assunto nos livros utilizados por professores e alunos da região. Em compensação, eles encontram cinco páginas sobre a imigração japonesa em outra ponta do país, a cidade de São Paulo. E, na mão inversa, não será surpresa que alunos paulistanos desconheçam a riqueza dos 300 anos de história do Sairé. Isto é o que acontece quando redes públicas de ensino adotam um padrão curricular fechado e distante das realidades locais.
Situação oposta acontece no Paraná, primeiro Estado a produzir e distribuir gratuitamente livros didáticos. O material é desenvolvido no âmbito do Projeto Folhas, criado em 2004 pela Secretaria de Estado da Educação. Dentro do projeto, o Livro Didático Público combina os conteúdos das disciplinas curriculares com a realidade de professores e alunos. Em seis anos, foram produzidos 297 livros, com participação do professor-autor, orientadores e colaboradores. O material é considerado pioneiro entre as iniciativas governamentais de produção e circulação de Recursos Educacionais Abertos (REA).
Sete anos depois do Folhas, iniciativas inovadoras como a do Paraná começam a se disseminar pelo Brasil. Em 7 de junho, o município de São Paulo colocou na internet, sob licença Creative Commons, todos os materiais didáticos produzidos pela Secretaria de Educação. No mesmo mês, entrou em tramitação na Câmara Federal um projeto de lei que determina licenciamento e disponibilização à sociedade, em licenças livres, de qualquer obra resultante do trabalho de servidores públicos, incluindo professores e pesquisadores. Também em junho, a Assembleia Legislativa de São Paulo acolheu o seminário “Material Didático Digital”, sob coordenação do deputado Simão Pedro (PT-SP). O parlamentar defende que o governo do Estado, nos seus protocolos de compra de material didático, coloque o conteúdo para acesso livre na internet. A justificativa: os REA, além de ampliar recursos orçamentários, introduzem o compartilhamento de conhecimento na rede de educação e permitem a interação entre conteúdos organizados pelos professores em diálogo com os alunos.
O Projeto Brasileiro sobre Recursos Educacionais Abertos (Projeto REA-Brasil) acompanha de perto essa movimentação. “Há várias obras educacionais abertas e pouquíssimas políticas públicas nesse campo. Mas um caminho está sendo aberto”, avalia a jornalista Bianca Santana. Uma das ativistas do REA-Brasil, integrante da Comunidade que congrega cerca de 120 pessoas, e da Casa da Cultura Digital, ela reconhece que o conceito é novo e ainda não foi incorporado no campo da educação. Mas é um caminho sem volta, principalmente por tratar do compartilhamento de conhecimento, “que é a essência da educação, principalmente a educação pública”.
O conceito de recursos educacionais abertos foi cunhado pela Unesco em 2002, no Fórum sobre o Impacto do Open Courseware para Instituições de Ensino Superior nos Países em Desenvolvimento: “provisão de recursos educacionais abertos, ativada por tecnologias de informação e comunicação (TIC), para consulta, utilização e adaptação por uma comunidade de usuários para fins não comerciais”. Classificam-se como REAs as obras, as ferramentas educacionais e os recursos para sua implementação oferecidos livre e abertamente. Nessas categorias estão incluídos livros e materiais didáticos, cursos completos, tópicos de um conteúdo, temas de aprendizagem, coleções e periódicos, softwares para auxiliar a criação, entrega, uso e melhoria do conteúdo de aprendizagem aberto, comunidades de aprendizado online e licenças livres de propriedade intelectual.
No Livro Verde dos REA, a advogada Carolina Rossini, da coordenação do Projeto REA-Brasil, escreveu que existem três pilares relativos à intersecção das TIC com a política educacional para melhorar o retorno dos investimentos públicos. O primeiro é que “os materiais educacionais de financiamento público, tanto os de ensino como os resultantes de pesquisa, devem ser considerados bens públicos e disponibilizados sob as definições internacionais dos REA”. O segundo trata da transparência: dados, estatísticas e avaliações com relação ao êxito da política de REA devem estar facilmente disponíveis a todos. O terceiro diz respeito ao envolvimento e à colaboração dos educadores, que devem ser incentivados a, junto com as comunidades, se engajar na elaboração e recombinação de conteúdos “a fim de aproveitar ao máximo a combinação de tecnologia e conteúdo aberto”.
Diferença de liberdades
A iniciativa que atende a maior parte dos requisitos é a do município de São Paulo, cuja licença CC BY-NC-SA 3.0 autoriza outras redes de ensino, municípios e estados a utilizar os conteúdos produzidos, desde que para fins não comerciais. A licença permite cópia, distribuição e transmissão das obras sob a mesma licença e criação de obras derivadas. O impacto da decisão será grande. A maior rede municipal de ensino do país tem 990.427 alunos em 864 escolas de educação infantil e 541 escolas de ensino fundamental, além de 82 mil funcionários. A medida contempla obras para educação infantil, ensino fundamental, ensino médio, educação especial, informática educativa, educação étnico-racial, cadernos de orientação didática e livros voltados para a recuperação em língua portuguesa e matemática. Além disso, estão disponíveis as orientações curriculares para educação infantil e ensino fundamental, as orientações didáticas para Educação de Jovens e Adultos (EJA), as obras para alunos do ciclo I do Programa Ler e Escrever e o acervo da Biblioteca Pedagógica Professora Alaíde Bueno Rodrigues, especializada em educação.
Outras iniciativas atendem apenas parte das qualificações de conteúdo e formato do REA. O Projeto Folhas, não licenciado por Creative Commons, traz na página inicial da obra a permissão de reprodução sem fins comerciais. Contudo, na rede está apenas o material para impressão em formato PDF, que não permite remix. Já o Portal do Professor, do Ministério da Educação (MEC), permite, em ambiente virtual, a troca de experiências entre professores do ensino fundamental e médio, por meio de recursos educacionais que facilitam e dinamizam o trabalho. Desenvolvida em software livre, a biblioteca tem amplo acervo de obras em domínio publico. Entretanto, há conteúdos e formatos copyright (sob licença de preservação total dos direitos autorais da obra).
Apesar do conceito teórico, ainda não há consenso na classificação dos REA. Na opinião de Bianca, há uma linha que separa o copyright da licença de grau máximo de disponibilidade, o domínio público: “na nossa cultura de total restrição, há muitas possibilidades. O que estiver nessa linha já é REA”. Frederico Gonçalves Guimarães, professor de Biologia da rede pública de Belo Horizonte (MG) e coordenador do coletivo Software Livre Educacional, vai além: “quanto mais recursos educacionais disponíveis, mais interessante fica a discussão. E, mais do que abertos, devem ser recursos livres, com, no mínimo, licença para uso não comercial e compartilhamento com a mesma licença”.
Legislação à vista
O conceito principal dessa proposição está no Projeto de Lei 1513/2011, em tramitação na Câmara Federal desde 2 de junho. Proposto pelo deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), o projeto não limita os recursos educacionais abertos a livros, incluindo os materiais complementares, softwares, multimídia, jogos, teses, dissertações, artigos científicos e acadêmicos, entre outros. Também determina que o governo apoie o desenvolvimento de repositórios digitais federados e desenvolvidos com software livre, que permitam o arquivo, a publicação, a distribuição e o fácil acesso a tais materiais.
“O Estado brasileiro investe uma fortuna no financiamento de recursos educacionais, seja por meio de compras públicas, de salários e bolsas de estudo e pesquisa, de isenção de impostos em toda a cadeia produtiva de livros. É um modelo de investimento público cujo acesso deve ser aberto a toda a sociedade”, diz o parlamentar. Ele acredita que, mesmo com licenças abertas, como a Creative Commons, a medida não provocará alterações significativas no modelo de negócio de editoras e na produção científica e cultural. “Defendo o direito autoral de forma que ele não se torne absoluto. Quando compra uma obra, o poder público deve ter o direito de utilizá-la livremente, e não apenas para professores e alunos, mas para todos.”
A medida traria um novo alento ao professor brasileiro, que, nas palavras de Bianca, “não tem segurança jurídica e diariamente desrespeita a lei do copyright”, ao utilizar em sala de aula recursos como filmes da Disney, imagens de livros copyright em folhas de atividades, animações em flash (da Adobe) e até mesmo fontes tipográficas proprietárias como Times e Arial em apresentações gráficas nos moldes do Power Point da Microsoft. “Para os educadores, é difícil utilizar materiais com fins didáticos e educativos sem ferir os direitos autorais. Os professores ficam restritos ao uso de livros didáticos, o que é um contrassenso em uma sociedade da informação, em uma cultura digital, com a imensa possibilidade que temos hoje de acessar as fontes mais diferenciadas possíveis”, lamenta Adriana Vieira, especialista em TIC e Educação e coordenadora do Núcleo de Tecnologia do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
Mais do que um projeto de lei, Teixeira quer que o MEC implante um programa de REA, fruto de uma política pública geradora de uma lógica pedagógica colaborativa e inovadora, “que recuperará o protagonismo de professores e alunos”. Faz eco ao Cenpec, que encara a abertura dos recursos educacionais como um passo para democratizar o acesso aos materiais, considerando-os bens públicos, e possibilitando que sejam adaptados e contextualizados conforme a realidade e a necessidade de cada comunidade educativa. “As políticas públicas neste setor estão muito voltadas para a questão instrumental do uso das TIC na educação: acesso, equipamentos das escolas e uso como apoio às aulas. Não que isso não seja importante, mas há pouca preocupação quanto às transformações culturais e de produção de conhecimento que as TIC proporcionam”, avalia Adriana Vieira.
É o que o próprio Cenpec vem fazendo desde 2010. A instituição, que desenvolve ações voltadas à melhoria da qualidade da educação pública e à participação no aprimoramento da política social, começa a discutir o assunto. Este ano, criou o Núcleo de TIC e Educação, que no segundo semestre de 2011 lançará o caderno institucional Ensinar e Aprender no Mundo Digital como REA. Será sua primeira publicação REA, online, com licença livre, em diferentes formatos, segundo os princípios da Iniciativa de Acesso Livre de Budapeste (BOAI, sigla em inglês de Budapest Open Access Initiative), de acesso livre de informação científica.
Outro projeto do Cenpec, que desde 2007 utiliza os princípios do REA, é o Minha Terra, do Programa EducaRede, uma rede social educativa com cerca de nove mil integrantes, que tem como princípios o compartilhamento e a colaboração. Os professores montam equipes de produção e a escola se transforma em uma agência de notícias locais. Em diálogo com os conteúdos curriculares, os alunos do ensino fundamental 2 fazem pesquisas e entrevistas, produzem conteúdos multimídia e protagonizam ações de intervenção na comunidade. Tudo vai para a rede, com acesso livre. O resultado tem sido a efetiva melhoria do aprendizado, maior motivação dos alunos, valorização do papel do professor e ampliação da noção de cidadania.
Entre o medo e a participação
Menos de sete quilômetros separam a Universidade de São Paulo (USP), a maior instituição de ensino superior da América Latina, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Ibrahim Nobre, na periferia oeste de São Paulo. É ali, no pequeno prédio pintado de verde e muros brancos pixados, que Cosme Freire Martins, formado em História e com mestrado em Educação, leciona História para alunos de 5º e 7º anos. O maior desafio? Trabalhar com crianças desmotivadas e recursos educacionais que não ajudam nem um pouco a reverter isso, pois nem sempre levam à reflexão e à construção do conhecimento.
Cosme avalia o material didático da rede municipal de ensino de São Paulo como tradicionalmente “robusto”, o que ajuda nas aulas. Reconhece a importância das salas de informática e de leitura. E vê com otimismo a disponibilização do conteúdo educacional na rede. Mas faz ressalvas: “uma coisa é o professor saber que existe o material, outra é a forma como vai utilizá-lo. É preciso saber se ele vai usar, de fato. Não podemos esquecer que na escola, principalmente a pública, o educador ainda olha o computador com medo, enquanto o menino detona no celular. Para que o projeto dê certo, é preciso participação”.
A adesão do professor é um dos grandes desafios enfrentados nos projetos de REA. Os educadores resistem, inseguros diante de dificuldades em lidar com as inovações pedagógicas e tecnológicas. Muitos não sabem dialogar com alunos que já chegam alfabetizados em tecnologia e têm medo de perder o status de autoridade e detentor do conhecimento. Frederico Gonçalves Guimarães, coordenador do coletivo Software Livre Educacional, explica: “com o REA, os alunos também constroem conteúdos. O que está em jogo não são apenas recursos educacionais, é uma nova forma de ver a educação. Se o REA for fruto de discussão e compartilhamento, funciona. Se não, corre-se o risco contrário, de existir uma grande biblioteca de recursos de acesso fácil, que criará um professor preguiçoso e diminuirá a reflexão”.
A constatação é compartilhada pelo Cenpec, que credita ao REA a qualidade de ser impulsionador da autonomia do professor. “As propostas do REA revalorizam e atualizam princípios sempre perseguidos por propostas de educação de qualidade, que buscam autonomia, participação e inclusão dos sujeitos. Nesse sentido, vale a pena”, afirma Bianca Santana, do Projeto REA-Brasil.
* Publicado originalmente na revista ARede, nº 71 de julho de 2011, e retirado do site Adital.