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Quem são os 99%? – parte 1

Clarence Thomas, da International Longshore and Warehouse Union, enfatizou a necessidade de que os 99% se unam. Foto: Judith Scherr/IPS

Nova York e Oakland, Estados Unidos, 8/11/2011 – A frase “somos os 99%”, cunhada pelos manifestantes do novaiorquino Parque Zucotti, é motivo de controvérsia entre as minorias que formam o movimento que questionam o sistema capitalista dos Estados Unidos, país de arraigada segregação racial e social. Utilizada em todo o país, a expressão “99%” se refere à população que recebe o que resta da riqueza nacional depois que os donos das corporações e o “1% mais rico” embolsam a maior parte.

Segundo um informe divulgado pelo Center for Social Inclusion (Centro para a Inclusão Social), os trabalhadores negros e latino-americanos nos Estados Unidos são considerados “de segunda classe”, além de estarem excessivamente representados em ocupações mal pagas, que exigem poucas habilidades e nas quais têm “limitadas possibilidades de subirem na escala de oportunidades”.

O estudo mostra que os norte-americanos que não são da raça branca e os imigrantes são sistematicamente excluídos do mercado de trabalho pelo fato de muitos não terem diploma universitário. Sua escassa educação é consequência da falta de recursos para a educação pública nos bairros onde moram.

“As pessoas de cor (como se denomina os que não pertencem à maioria anglo-saxã nos Estados Unidos) não podem ter acesso a centros de empregos localizados longe de suas casas devido a inadequados serviços de transporte público”, diz o documento. “Negros, latino-americanos, indígenas norte-americanos e populações específicas de asiáticos vivem onde não estão os empregadores, onde os governos locais não estabelecem transporte público e onde a base de arrecadação de impostos é muito pequena para financiar adequadamente as escolas”, acrescenta o informe.

Um grupo de manifestantes se concentrou no dia 25 de outubro, à noite, no Battery Park, bem perto de onde está acampado o movimento Ocupe Wall Street, para participar de um debate sobre poder e privilégios. A discussão foi organizada pelo Grupo de Trabalho de Pessoas de Cor (POC WG) para o Ocupe Wall Street, que luta para incorporar um discurso de desigualdades estruturais no movimento.

Um mês antes, membros da organização South Asians for Justice (Asiáticos do Sul pela Justiça) chegaram à assembleia geral realizada no distrito financeiro a tempo de ouvir a leitura do que seria o primeiro documento oficial, a “Declaração da ocupação da cidade de Nova York”, disse à IPS a organizadora do POC WG, Thanu Y.

“Imediatamente nos causou impacto o segundo parágrafo desse documento, que dizia: ‘Nós, os ocupantes, antes divididos pela cor de nossa pele, pelo nosso gênero, orientação sexual (…) somos uma só raça, a raça humana’, e sentimos que o tom da declaração estava apagando a história das comunidades de cor e dos imigrantes dos Estados Unidos, e assumindo que todos partíamos do mesmo ponto, nos setores econômico e político, quando saímos para protestar contra esta crise econômica. Isso nos parece incorreto”, disse Thanu.

“Creio que é preciso que um debate sobre essas desigualdades tenha protagonismo neste movimento nos Estados Unidos e inclusive no plano mundial, onde as realidades de classes e castas simplesmente não podem ser ignoradas. A maneira como estamos divididos é parte do motivo pelo qual há uma crise econômica”, destacou a ativista.

Assim, o grupo decidiu bloquear a declaração, e permaneceu no Parque até por volta da meia-noite, reformulando o texto para refletir melhor a diversidade dos integrantes do movimento. Desde então, o POC WG é uma força importante dentro da organização Ocupe Wall Street, incentivando a participação das minorias.

Apesar do brutal fechamento, em 25 de outubro, do acampamento do Ocupe Oakland, na Califórnia, uma semana depois o movimento se recuperou nesse Estado, e cada vez mais a população negra busca manter no alto a tradição combativa da cidade. O Partido dos Panteras Negras nasceu em 15 de outubro de 1966 nessa cidade, que também abrigou um forte movimento antiapartheid liderado por negros, e impulsionou o capítulo da Rainbow Coalition (Coalizão Arco-Íris) mais forte do país.

Quatro décadas depois, o Ocupe Oakland conta com o apoio de habitantes afrodescendentes de maneira individual, mas não conseguiu obter o apoio dos setores mais importantes: pastores e funcionários negros. Em boa parte, há uma limitada participação negra porque se trata de um movimento liderado por brancos, segundo o advogado afrodescendente e veterano defensor dos direitos civis Walter Riley.

“Cada vez que neste país há um movimento iniciado principalmente por brancos, existe a tendência de nele não haver um grande número de negros”, disse Riley. “Isso não significa que os negros não o apoiem”, prosseguiu, destacando que o que está no núcleo do movimento Ocupe (a condenação dos bancos) é um ponto crucial das queixas da população negra, por exemplo, quanto à falta de investimentos em bairros dessa comunidade.

Oakland também representa a desigualdade que há dentro do “99%”. Em 2010, o desemprego entre os brancos foi de 7%, enquanto entre os negros e latino-americanos chegou a 19,6% e 15,2%, respectivamente. O supervisor do condado de Alameda, Keith Carson, também afrodescendente, apoia a mensagem anticorporações do movimento, mas considera “perturbador” o fato de não haver líderes. Segundo Carson, os ocupantes de Oakland enviaram a mensagem errada ao acamparem diante da prefeitura, quando os objetivos reais deveriam ser os bancos.

A falta de uma forte participação negra também pode ser entendida no contexto da mudança demográfica. Nos anos 1980, 46% dos habitantes de Oakland eram negros. Atualmente, são apenas 27%, enquanto 25% são brancos, apenas um pouco mais que os latino-americanos. Como disse o reverendo Daniel Buford, agora que a comunidade branca mais rica se vê prejudicada pelo desemprego e pelas execuções hipotecárias, seus membros lideram o movimento de protesto contra as corporações e os bancos. Por sua vez, a igreja negra continua se organizando em torno de assuntos primordiais, como a educação, afirmou.

Clarence Thomas, membro do conselho executivo da International Longshore and Warehouse Union em São Francisco e ex-Pantera Negra, destacou a necessidade de os “99%” se unirem. Segundo ele, uma das fortalezas dos Panteras foi sua capacidade de estabelecer coalizões com aliados brancos, e isto pode ocorrer no movimento Ocupe. É um erro achar que se trata de um movimento liderado por jovens brancos, afirmou. “É só uma questão de participarmos do processo”, acrescentou. Envolverde/IPS

* Este é o primeiro de dois artigos sobre as influências étnicas e de classe nos movimentos inspirados no Ocupe Wall Street nos Estados Unidos.