Durante a Semana da Água, há poucos dias, a ONU lembrou que 2,4 bilhões de pessoas no mundo vivem sem saneamento. E cerca de 80% da “água residual” de assentamentos humanos ou fontes industriais é despejada sem tratamento e “contamina oceanos, lagos e rios”. Com o abastecimento e o saneamento inadequados, ocorre uma “perda econômica de US$ 260 bilhões em gastos com saúde e menor produtividade no trabalho”. Nesses mesmos dias, os jornais brasileiros informavam que uma das bacias mais importantes do Brasil – a do Rio Doce, em Minas Gerais e no Espírito Santo – sofre os impactos da degradação ambiental; sua vazão tende a tornar-se insuficiente para atender às atividades econômicas na região (Valor, 3/9), incluídas as de mineradoras e até hidrelétricas. No médio Rio Doce, a pecuária também está afetada, com pastagens que já não podem receber mais de meia cabeça de gado por hectare (já receberam uma média de quatro cabeças por hectare).
Certamente uma das razões da perda de vazão do rio estará no desmatamento de áreas do Cerrado e na perda da água acumulada no subsolo desse bioma. O desmatamento já chegou, em todo o Cerrado, a perto de 50% da área total. A compactação do solo resultante, assim como problemas na área do clima, levaram técnicos do Ministério do Meio Ambiente a estimar, há quase uma década, que o volume de água no subsolo – que antes gerava o fluxo de 14% das águas brasileiras que correm para as três grandes bacias (Amazônica, do São Francisco e do Paraná) e era suficiente para sete anos – caíra para três anos. E o desmatamento prossegue, inclusive com a política de ampliação da área de plantio da cana-de-açúcar.
Não é de estranhar, assim, o que acontece na bacia do Rio Doce, bem como na do São Francisco – retratadas com realismo pelo jornalista Marco Antônio T. Coelho em seus livros (Editoras Paz e Terra e Autêntica), comentados neste espaço -, onde a visão apenas economicista tem comandado a ocupação do território e causado a redução do fluxo dos afluentes também do São Francisco. Ainda há poucos dias o governo federal decidiu ligar as usinas termoelétricas nordestinas movidas pela queima de carvão, diesel e gás (as mais poluentes e caras), para “evitar a possibilidade de um apagão”. E, pode-se acrescentar, por causa do baixo nível de acumulação de água nos reservatórios das hidrelétricas, o menor nos últimos dez anos. Sobradinho e Três Marias, por exemplo, estão com apenas 36% de sua capacidade de armazenamento (O Globo, 4/9).
E tudo se pode agravar mais com o bilionário e ilógico projeto de transposição de águas do grande rio, que já custa mais que o dobro do inicialmente anunciado e ainda pode ir além – embora esteja longe da conclusão. Não bastasse, no projeto das cisternas de placa – eficientes para abastecer casas e pequenos povoados onde vivem milhões de pessoas e aonde não chegará a água a ser transposta -, elas estão sendo substituídas por cisternas de plástico. Estas, menos adequadas, custam muito mais caro. E uma licitação para instalar 187,5 mil delas em seis Estados, ao custo de quase R$ 600 milhões, está suspensa e sob investigação do Tribunal de Contas da União, por suspeita de favorecimento de empresas. O cálculo é de que serão necessárias mais 750 mil cisternas (remabrasil, 1.º/9).
Informações como essas dão peso a advertências do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, de que se pode agravar a escassez de água no mundo, principalmente se não aumentarem os esforços para a conservação da biodiversidade, pois esta depende da água e vice-versa (sem falar em clima e energia). E o Cerrado brasileiro comprova isso. O mais recente relatório mundial sobre a água, editado pela ONU, considera necessário um fundo de até US$ 19,2 bilhões para financiar projetos nessa área.
Não precisamos ir longe para confirmar tudo isso. Ainda há poucas semanas, por exemplo, o governo paulista assinou (Estado, 22/8) contrato de parceria público-privada para “construir o maior sistema de abastecimento desde o Alto Tietê, entregue em 1993”, destinado a atender ao oeste e ao sudoeste da Grande São Paulo. Com a implantação de áreas para captação, armazenamento e tratamento de água, o sistema, que trará água captada a 83 quilômetros de distância, atenderá a 1,5 milhão de pessoas – uma vez que está esgotada a possibilidade de ampliação em fontes mais próximas e em bacias nas quais já há conflitos pelo uso. Quanto custará essa água (4,7 mil litros por segundo, mais 7% em relação ao potencial efetivo de hoje, de 73 mil litros) trazida da região de Ibiúna, principalmente tendo de superar um desnível de 300 metros? Quanto em energia para elevá-la? O investimento previsto será de R$ 2,21 bilhões. E quanto custará mais água no futuro, se tiver de ser trazida do Vale do Ribeira, muito mais longe e tendo de superar desnível bem maior? A previsão é de que o consumo aumente 40% (mais 30 mil litros por segundo) até 2035.
Ainda será preciso avaliar com cuidado o caminho da privatização nesse setor, que foi alvo de muitas críticas no recente Fórum Mundial de Meio Ambiente, promovido em Foz do Iguaçu pelo Lide – Grupo de Líderes Empresariais (www.cdn.com.br). Uma das vozes mais contundentes foi a do norte-americano Robert F. Kennedy Jr. – filho do ex-senador Robert F. Kennedy e sobrinho do presidente John F. Kennedy -, que citou exemplos de privatizações problemáticas, como as de Cochabamba, na Bolívia, e a privatização de todo o abastecimento de água no Chile.
Não é preciso desmatar nenhum hectare mais no Cerrado. Em Goiás, o governo estadual tem reiterado que um dos caminhos é recuperar mais de 50% das pastagens naturais goianas, que estão degradadas e mal comportam uma cabeça de gado por hectare. Mas o desmatamento do Cerrado prossegue em todo o Centro-Oeste, no Tocantins, no Maranhão, no Piauí e, em nível alarmante, no oeste da Bahia. Para plantar cana e soja. E fornecer lenha a siderúrgicas – como em Minas Gerais.
* Washington Novaes é jornalista.
** Publicado originalmente no site O Estado de S. Paulo.