Estava debatendo com meus alunos, dia desses, sobre o processo de construção da identidade e como o nacionalismo é utilizado sistematicamente para ir à guerra contra um suposto inimigo em nome de algo que, não necessariamente, mereceria tal esforço. Nestes dias de medalhas de ouro, prata e bronze, construímos heróis que dão orgulho de nos sentirmos brasileiros – é um nadador aqui, um mesatenista ali, uma jogadora de vôlei, uma corredora. Atualizei uma discussão que já havia feito aqui, mas vale a pena.
Senna ocupou espaço de mártir na TV, quando a seleção brasileira de futebol (que é a heroína – literalmente – de plantão) estava em baixa. Usineiros já foram chamados de heróis pelo presidente da República. Quando um grande empresário morre, há um esforço para que ele se torne a referência que não foi em vida. Alguém vai me tacar uma pedra por colocar um ídolo do esporte e um usineiro de cana no mesmo bote. Mas não estou discutindo caráter, apenas dizendo que nós, da mídia, e o poder criamos heróis sem nenhum constrangimento. Às vezes, sem intenção.
Quem mora em São Paulo sabe que havia uma avenida chamada Águas Espraiadas. Mas a prefeitura acabou por rebatizá-la, homenageando um morto ilustre. Seria preferível, na minha opinião, que ganhasse o nome de Jornalista Vladimir Herzog, que se dedicou à liberdade e foi assassinado pela ditadura, mas vá lá. Esconder os verdadeiros heróis, seja largando-os ao ostracismo, seja fazendo suas biografias competirem com histórias de “heróis de ocasião” diz muito sobre um país.
Ao centrar o foco nesses exemplos, considerando-os caminhos a serem seguidos, nos distanciamos de quem mereceria ganhar uma medalha de verdade. Perguntei a um amigo que cobre a área de esportes, quantos heróis são “fabricados” por ano na área. Ele respondeu dizendo que os exemplos de superação pessoal são os pinçados com frequência.
Seguindo essa lógica, apresento um nome para ser incensado nem que seja por 15 minutos. Antônio acorda às 5h da manhã, pega suas coisinhas, com duas conduções vai até Santo Amaro para vender café da manhã na rua. Depois, quando os clientes desaparecem, é hora de começar a trabalhar o serviço de pintor, bico que rende algo no final do mês mas que sinceramente não vale a pena – como ele tem três crianças e uma mulher com câncer em casa, que luta há anos para não morrer na rede pública, pois não tem acesso ao Sírio Libanês, é o jeito. À noite, acende o fogo e começa a vender churrasquinho no ponto de ônibus para completar a renda. Chega em casa cinco horas antes de ter que acordar novamente. Como mora perto do autódromo de Interlagos, pôs sua churrasqueira perto de casa para conseguir algum em um final de semana lotado. A Guarda Civil Metropolitana levou tudo embora. Como ele ia trabalhar no dia seguinte? Sei lá. Superação.
É claro que ninguém gostaria de seguir o exemplo de Antônio. A sua vida não tem o glamour de treinar natação nos Estados Unidos, e sua mulher, quando teve um problema sério e quase perdeu o braço, não pegou helicóptero, mas sim um busão para ir ao pronto-socorro. Uma droga, para ser curto e grosso. Não adianta dizer que ele é feliz, que tem Deus no coração, que a família o ama. Isto é apenas jogar purpurina em cima.
É Antônio, mas podia colocar aqui uma relação de nomes, grossa como uma lista telefônica, de pessoas que aceitam a mesma batalha no dia-a-dia porque se desistirem, morrem – e nunca ganharão uma medalha por isso. Pelo contrário, são tratadas como restolho da sociedade, mão-de-obra barata, voto fácil, massa burra, pelas elites econômica e política. Apesar de servi-los, alimentá-los, transportá-los, enriquecê-los. Se usineiros são heróis, cortadores de cana são o quê?
Na hora em que o nome de qualquer um desses, cuja desgraça é apenas um detalhe e por isso mantém-se escondida embaixo do tapete, for retirado das entranhas da sociedade e gritado a plenos pulmões como alguém que merece ser um herói, não precisaremos mais de heróis.
E não encararíamos adversários como inimigos.
E a vida seria outra.
* Publicado originalmente no Blog do Sakamoto.