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Rebelião policial sacode a democracia argentina

Policiais de La Plata que permaneceram durante todo o dia realizando manifestações e bloqueando o acesso à sede policial dessa cidade, comemoram após conseguirem um acordo de aumento salarial. Foto: Matías Adhemar/IPS
Policiais de La Plata que permaneceram durante todo o dia realizando manifestações e bloqueando o acesso à sede policial dessa cidade, comemoram após conseguirem um acordo de aumento salarial. Foto: Matías Adhemar/IPS

 

La Plata, Argentina, 16/12/2013 – A confusão e a violência que a Argentina viveu nos últimos dez dias, com a rebelião das forças policiais de 20 das 23 províncias e a morte de 15 pessoas demonstraram que as forças de segurança podem pôr de joelhos a população e o governo. No dia 13, chegaram a acordos as policiais de duas províncias: Salta, no noroeste, e Entre Ríos, no nordeste. Continuam os conflitos em La Pampa, centro, e na austral Terra do Fogo.

Tudo começou no dia 3 deste mês na província de Córdoba, no centro, cuja polícia se aquartelou exigindo aumento salarial e deixou sem segurança o território, o que provocou uma onda de saques e um morto. O jornalista cordovês Tomás Méndez usa colete à prova de balas há três meses, quando denunciou um escândalo de narcotráfico em sua província. Uma dezena de integrantes da cúpula policial está detida e as responsabilidades podem chegar inclusive ao governo da província, embora até o momento apenas o secretário da Segurança, Alejo Paredes, tenha perdido o cargo.

Para Méndez, “o autoaquartelamento ocorreu devido ao escândalo do narcotráfico, que desnudou a impunidade dos altos chefes e mostrou a polícia como uma organização criminosa, com autorização do governo e cumplicidade da justiça”. Segundo o jornalista, “desmotivados e com problemas econômicos por terem perdido a caixa da droga, com a mira da justiça sobre as demais repartições suspeitas de reproduzirem a estrutura corrupta em outros negócios, os policiais se propuseram a mudar algumas coisas”.

Quando o governador, José Manuel de la Sota, que estava na América Central, regressou e deu uma resposta positiva à reivindicação, outras forças iniciaram seus protestos, em um efeito dominó que se estendeu por 20 províncias do país. Sucederam-se saques, aos quais alguns moradores resistiram com barricadas e uso de armas, e 15 pessoas morreram. A presidente Cristina Fernández condenou “a extorsão contra uma sociedade por parte dos que portam armas e liberam áreas onde pessoas cometem delitos”.

Em Córdoba, “a primeira mensagem que mandaram pela rede de mensagem móvel WhatsApp dizia ‘chega de corrupção, chega de máfias, aumento salarial’, isto é, o aumento de salário era uma das reclamações, mas não a mais importante. E muito menos para que se convertesse no que se converteu: quase uma extorsão”, afirmou Méndez. O salário mensal de um policial de Córdoba passou de 2.600 pesos argentinos para oito mil pesos (de US$ 424 para US$ 1.273), o que deu coragem às demais forças policiais.

Para o jornalista, o fato de os policiais conseguirem aumento de 220% demonstra que não se tratou de uma disputa salarial. “Deu seus frutos porque ativaram os criminosos para saírem para saquear e as pessoas notarem sua ausência nas ruas”, denunciou Méndez, que não acredita que melhores salários reduzirão a corrupção. “Tem que acontecer uma mudança cultural, por mais que lhes paguem cem mil pesos isto não mudará. Há casos de promotores federais que cobram 50 mil pesos e vão revender o sequestrado pela polícia às joalherias do centro de Córdoba. Necessitamos de um novo contrato social”, ressaltou.

O ocorrido foi planejado e se repetirá, explicou à IPS o defensor geral da província de La Pampa, Eduardo Luis Aguirre. “Devemos agilizar as responsabilidades políticas futuras porque, obviamente, essas situações estão longe de serem episódicas”. A polícia dessa província foi a última a se rebelar. Para Aguirre, esses incidentes são parte “das tentativas de desestabilização que ocorrem contra governos autônomos provinciais da região que incorporaram diferentes variáveis”. Porém, na Argentina, “essas expressões de grupos fáticos não reconhecem uma só matriz”, afirmou.

No dia 10 completaram-se 30 anos de restauração da democracia. “Temos uma dívida pendente na construção de mecanismos de democratização efetivos das forças de segurança”, afirmou Aguirre. “É preciso que as polícias deixem de se comportar como braço armado das expressões mais retrógradas da sociedade”, acrescentou o advogado, que acredita que a polícia deve discutir sua remuneração em negociações paritárias. “E é preciso que se pague salário de acordo com as tarefas que realizam, não pode haver nenhuma negociação se for provocado o caos e se a aposta for gerar alarme e medo”, opinou.

Também é necessário, prosseguiu Aguirre, “estratégias proativas” para que os novos agentes tenham acesso a uma formação de qualidade e a orientação ideológica, cultural e política, “para transformar a polícia de perfil militar em uma de vizinhança, com outra matriz, outro olhar do outro, do diferente, do diverso”. O jurista afirmou que “a maior circulação de riquezas recompôs o mapa social de muitas províncias. Sem dúvida, a polícia deve ser vista como reprodutora de uma determinada ordem social. O fundo do conflito é a distribuição da riqueza”.

Fontes do governo federal disseram à IPS que se estuda apoiar as províncias que decidirem realizar mudanças profundas para democratizar as forças policiais. Entre essas reformas é mencionado o controle civil, a seleção de delegados por voto popular e a exigência de qualificação psicológica e acadêmica para portar armas. O governo pediu aos promotores que investiguem se houve crimes contra a ordem institucional. Segundo o procurador-geral de Mar del Plata, Daniel Adler, “o aquartelamento de pessoas das forças de segurança que portam armas de fogo implica levante em armas contra os poderes públicos, reprimido na lei penal”.

Um dos porta-vozes dos agentes rebeldes da cidade de Mar del Plata foi Carlos Pampillón, do ultradireitista Fórum Nacional Patriótico e denunciado por organizações judias devido à sua participação em um vídeo que reproduz a saudação nazista e uma marcha do nacional-socialismo alemão. Papillón, que se define em sua conta no Twitter como “Patriota ARGENTINO”, ganhou notoriedade em outubro por amedrontar um grupo de estudantes secundários que haviam cometido vandalismo em uma igreja católica. Envolverde/IPS