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Referendo da Crimeia separa famílias

 Multidão agita bandeiras da Crimeia e da Rússia em Simferopol depois do referendo. Foto: Alexey Yakushechkin/IPS

Multidão agita bandeiras da Crimeia e da Rússia em Simferopol depois do referendo. Foto: Alexey Yakushechkin/IPS

 

Kiev, Ucrânia, 19/3/2014 – A Crimeia se prepara para se integrar à Rússia, após um referendo que a maior parte da comunidade internacional considera totalmente ilegal, enquanto muitas famílias da península devem se separar devido à agitação política e outras pensam em abandonar a região. O referendo, realizado no dia 16, mostrou que uma esmagadora maioria da população da Crimeia quer voltar a ser parte da Rússia.

Segundo dados oficiais, 97% dos eleitores apoiaram unir-se à Rússia, com um comparecimento às urnas de 82% dos habilitados a votar. A Crimeia é até agora uma república do sul da Ucrânia. Muita gente comemorou nas ruas em cidades como Sebastopol e Simferopol, esta última capital regional, quando foram conhecidos os resultados, mas a decisão já começou a impactar muitas famílias locais.

“Há conflitos nas famílias daqui. Algumas têm avós com raízes familiares russas e que apoiam a Rússia firmemente. Depois há seus netos, que se sentem ucranianos e que no referendo votaram contra a integração à Rússia”, disse à IPS a professora Valery Dorozhkhin, de 39 anos, da Universidade de Simferopol.

Historicamente, grandes partes do sul e leste da Ucrânia têm vínculos culturais estreitos com a Rússia. Mas estes são particularmente profundos na Crimeia. Essa península foi anexada pelo império russo no final do século 18, mas os russos não foram maioria na região até depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Isso aconteceu em grande parte depois que o ditador soviético Josef Stalin enviou mais de 200 mil tártaros para campos de trabalho na Ásia central, sob a falsa acusação de terem colaborado com os nazistas. Quase 40 mil deles morreram durante a viagem.

Pertencentes ao povo turco muçulmano que viveu na região durante séculos, foram substituídos por russos na península e só regressaram à região quando a União Soviética começou a se desintegrar. Agora representam cerca de 14% da população da Crimeia e, por sua história, muitos desconfiam da Rússia. Em 1954, o então líder soviético Nikita Kruschev converteu a Crimeia em parte da Ucrânia. Atualmente, 60% da população da península é de origem russa e tem o russo como língua materna.

Como parte da União Soviética, as eventuais tensões étnicas foram mantidas contidas. Porém, desde que a Ucrânia ficou independente, em 1991, começaram as reclamações separatistas por parte de grupos da comunidade russa da Crimeia, com altos e baixos em seu apoio. Os levantes políticos registrados na Ucrânia nos últimos meses acabaram exacerbando essas tensões étnicas. Muitos ativistas pelos direitos humanos e observadores independentes destacam que a rápida campanha pelo referendo foi marcada por fatos de violência e repressão contra comunidades não russas e contra quem apoiava o novo governo ucraniano em Kiev.

Entretanto, não é só uma linha ideológica que divide os ucranianos nativos dos de origem russa. Também existe uma notória divisão política entre os mais jovens e os mais velhos. Os jovens foram maioria entre os milhares de manifestantes que apoiaram que a Crimeia continuasse sendo parte da Ucrânia. Os mais jovens só conheceram uma Crimeia integrada à Ucrânia e se sentem confusos, e em alguns casos também temerosos sobre como serão suas vidas sob um regime diferente.

“Neste momento, os mais jovens têm um momento especialmente difícil na Crimeia. Eles veem a si mesmos como ucranianos, se sentem ucranianos”, pontuou Dorozhkhin à IPS. Essa preocupação sobre o futuro imediato já levou

alguns a pensarem em abandonar a Crimeia. Há registro de casos de famílias que decidiram abandonar a região, enquanto outros estão preocupados com seus empregos. Alguns ucranianos residentes na Crimeia asseguraram que perderam seus empregos ao serem vistos como favoráveis às autoridades em Kiev.

Valdimir Vasylenko, de 37 anos, trabalha em uma organização não governamental em Sebastopol. Seu estado de ânimo resume o de todos aqueles preocupados com o futuro. Quase às lágrimas, explicou à IPS que teme que a atitude negativa das autoridades russas com as entidades da sociedade civil coloque em risco seu trabalho. Também disse que está preocupado por não ter ideia de como será, em geral, a vida sob o regime russo.

“Me pergunto se devo ir embora. Às vezes penso que sim, mas minha mãe e minha avó não irão, porque não querem. Tenho que pensar nelas também. Simplesmente não sei o que fazer. O pior é que ninguém sabe o que acontecerá em seguida”, ponderou Vasylenko.

Na Crimeia, as tensões persistem, apesar do apoio esmagador pela união com a Rússia. A população tártara, que representa 13% dos habitantes da península, boicotou o referendo. As comunidades tártaras têm cada vez mais medo: muitos integrantes desconfiam da Rússia devido ao que aconteceu aos seus ancestrais sob o regime de Stalin.

Os tártaros denunciam que suas comunidades têm cada vez mais medo de ataques de grupos de autodefesas pró-russos, que perambulam pelas ruas à noite. Segundo eles, às vezes, pela manhã, se encontra cruzes brancas pintadas nas portas de suas casas. Em resposta, formaram seus próprios esquadrões de autodefesa, que controlam áreas com populações tártaras, enquanto outros fazem a segurança nas mesquitas.

Já os que apoiam a reintegração à Rússia preveem um futuro brilhante para a Crimeia. Aleksandr Pavluk, de 54 anos, vive em Simferopol e trabalha em uma das indústrias estratégicas da Crimeia, o turismo. “Aqui todos estão bem depois do referendo. Estamos muito felizes e a população sonha ser parte da Rússia”, contou à IPS. “Todos esperamos um grande verão, quando aguardamos pela chegada de muitos turistas, tanto da Rússia quanto da Ucrânia”, acrescentou. Envolverde/IPS