Arquivo

Reformas cubanas atrás das mudanças sociais

Mercado Amistad, um dos comércios que vendem produtos em moedas estrangeiras, oficialmente chamados lojas de recuperação de divisas, no bairro Centro Havana, na capital cubana. Foto: Jorge Luis Banños/IPS
Mercado Amistad, um dos comércios que vendem produtos em moedas estrangeiras, oficialmente chamados lojas de recuperação de divisas, no bairro Centro Havana, na capital cubana. Foto: Jorge Luis Banños/IPS

 

Havana, Cuba, 4/12/2014 – Entre os grandes desafios das reformas assumidas pelo presidente Raúl Castro figura o de elevar a qualidade de vida da população cubana, que ainda sofre o impacto de uma recessão iniciada há mais de 20 anos, que truncou suas aspirações de equidade econômica e social.

O aumento das desigualdades ficou evidente a partir da crise desatada após o desaparecimento da União Soviética e do campo socialista do leste europeu, no começo da década de 1990. O período especial (como se denomina essa longa etapa de recessão) “afetou moralmente o conceito de igualdade”, explicou à IPS o economista Esteban Morales.

Para minimizar o custo da recessão, o governo da época, encabeçado por Fidel Castro (1959-2008), abriu o país ao investimento estrangeiro, fomentou com maior força o turismo internacional, legalizou a posse do dólar e criou as Lojas de Recuperação de Divisas (TRD), entre outras medidas cujos benefícios econômicos chegaram acompanhados das desigualdades sociais.

Porém, María Caridad González, de 36 anos, casada, avalia seu senso de igualdade pelas possibilidades de inclusão social de seu filho de dez anos, que “já sabe que para progredir na vida precisa estudar e ser um profissional”. O acesso gratuito à educação e aos serviços de saúde têm sido valioso espaço de igualdade social neste meio século.

De origem camponesa, González se mudou para Havana em meados dos anos 1990. “No começo foi difícil. Havia um grande desabastecimento, faltava de tudo, mas ainda assim fiquei e me casei. Agora há muitas lojas e mercados de alimentos e o que falta é dinheiro para comprar”, contou a mulher que trabalha no serviço de limpeza em uma empresa com capital estrangeiro.

Seu caso não é o pior, pois serviços domésticos em casas de famílias conhecidas lhe rendem outros 80 CUC, o peso cubano conversível com o dólar e de circulação legal no país. Trocados por moeda nacional, a renda pessoal de González chega a 1.920 pesos. Esse valor equivale a mais de quatro vezes o salário médio estatal de 470 pesos (cerca de US$ 19).

“Graças à minha renda sobrevivemos nos meses em que meu marido, cozinheiro no setor turístico, esteve sem trabalho”, contou González, cuja situação contrasta com a de sua vizinha, uma professora primária de 55 anos que ganha 750 pesos mensais e nenhuma divisa. “O que entristece é pessoas com menos preparo e responsabilidades ganharem mais do que um profissional. Quando comecei a estudar na década de 1980 não era assim. A pessoa recebia salários que rendiam mais”, disse à IPS esta professora, casada, com dois filhos de 25 e 20 anos.

As brechas de desigualdade aumentaram com as diferenças de renda. Os que só dispõem de um salário estatal, pessoas aposentadas ou protegidas pela assistência social estão bem abaixo de satisfazer suas necessidades básicas. Dados do Centro de Estudos da Economia de Cuba mostram que os alimentos absorvem entre 59% e 75% dos gastos familiares.

Preservado apesar das dificuldades econômicas, o sistema de saúde, educação, seguridade e assistência social para pessoas vulneráveis foi decisivo para colocar Cuba este ano no 44º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Este é um indicador por país baseado em três parâmetros: vida longa e saudável, educação e nível de vida digno.

“Entendo e valorizo isso, mas não é menos certo que a renda nos diferencia na hora de sentar à mesa ou nos vestirmos”, insistiu a professora, que pediu para não ser identificada.

Morales concorda com o critério oficial de que não se trata de igualitarismo, mas de “igualdade de direitos e oportunidades”. Em sua opinião, a distribuição pela via do trabalho continua sendo desigual. “O ético é que as pessoas recebam segundo o que contribuem e mediante o gasto social se ajude os que necessitam, para equilibrar as desigualdades”, afirmou.

Este economista defende a ideia de subsidiar pessoas e não produtos, como ainda se faz mediante a caderneta de abastecimento que distribui uma certa quantidade de alimentos a preços subvencionados pelo Estado para toda a população, sem importar a renda de cada um. Embora com austeridade, esse sistema atendia as necessidades da família até os anos 1980, mas atualmente é insuficiente e as pessoas devem completar a cesta básica nas lojas em divisas e nos agromercados, onde uma libra (450 quilos) de bisteca suína pode custar 40 pesos (US$ 1,60), igual a uma libra de cebola em certas épocas do ano.

Em seu plano pastoral 2014-2020, a Igreja Católica se queixa de que setores amplos da população sofrem “pobreza material, produto de salários que não bastam para manter dignamente a família”. Essa situação, assegura a Igreja, tem impacto tanto em trabalhadores de nível técnico médio com em profissionais.

Após reconhecer que a abertura ao trabalho independente e a ampliação do cooperativismo para setores não agrícolas abriram oportunidades de superação para algumas pessoas, a Igreja Católica alerta que as atuais reformas econômicas “não conseguiram reativar a economia de maneira a ser percebida por toda a população”.

Nem todos os setores da sociedade estão em igualdade de condições para aproveitar essas mudanças. Morales e pesquisadores como Mayra Espina dizem que as mulheres, pessoas não brancas e jovens estão em desvantagem, seja por falta de qualificação, por bens ou ativos diante da possibilidade de empreendimentos próprios.

O último dado público sobre pobreza em Cuba é de 2004 e indica que 20% da população urbana, que representa mais de 76% dos 11,2 milhões de habitantes, estão nessa situação. Especialistas temem que esse indicador hoje seja igual ou maior, algo que os tomadores de decisão deveriam conhecer para aplicar políticas sociais adequadas.

Entretanto, Espina e outros estudiosos desses temas alertam que o programa de transformações aprovado em abril de 2011 subvaloriza o social, omite o tema da pobreza e da desigualdade e contém instrumentos muito débeis de igualdade. Envolverde/IPS