Johannesburgo, África do Sul, 11/11/2011 – Dois amigos ruandeses conversam em um popular restaurante desta cidade sul-africana. Sua amizade não gera suspeitas neste país, mas para eles demorou anos superar a mútua desconfiança, pois um é tutsi e o outro é hutu. Agora sofrem a angústia de perder a condição de refugiados. Claude Kayitare e Theogene Nshimyimana se instalaram na África do Sul sob amparo do escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur).
Ruanda foi palco, em 1994, do maior genocídio registrado na África. Cerca de 800 mil membros das etnias tutsi e hutu moderados morreram nas mãos das milícias e cidadãos comuns, dedicados durante cem dias a uma orgia de sangue incentivados pelo regime hutu de linha dura.
Nshimyimana e Kayitare conversam sobre a possibilidade de o Acnur recomendar em dezembro que se aplique aos ruandeses exilados as cláusulas de fim do status de refugiados que figuram na Convenção de Genebra de 1951. Trata-se de uma via legal que reconhece a mudança de circunstâncias no país que os expulsou ou dos expatriados no território que os acolheu.
Se as cláusulas forem aplicadas, o país que os acolheu já não terá obrigação de oferecer-lhes proteção. Para isso, deve-se demonstrar que as novas condições são estáveis e favoráveis para o regresso. O Acnur pode recomendar o fim do status, mas cada país de forma individual a aceita e instrumenta. Está em estudo a redação das exceções à norma.
Porém, Nshimyimana não acredita nas exceções. “Pode ser que existam no papel, mas na prática a implantação será assim: a cláusula habilita os países a expulsarem estrangeiros e nos obrigarão a voltar” para Ruanda, afirmou. Desde que o Acnur anunciou, em 2009, que estudava recomendar o fim da condição de refugiados para os ruandeses, o país esta sob rígida vigilância de organizações defensoras dos direitos humanos.
Muitas instituições e associações de refugiados questionam a aplicabilidade da medida a Ruanda. “Pertenci ao Exército Patriótico de Ruanda e trabalhei no Departamento de Inteligência Militar”, contou Kayitare, que fugiu de seu país por essa razão. O governo utiliza os soldados para eliminar a oposição política, os críticos dos meios de comunicações e os cidadãos que não acatam a disciplina, garantiu.
“O presidente de Ruanda, Paul Kagame, obteve 95% dos votos nas eleições de 2010. É possível esse tipo de maioria?”, questionou Kayitare com ironia. “Imagina que vai votar, está no local secreto com um soldado armado guardando o lugar. Então vem o medo de que possa ter visto que não colocou o X no nome de Kagame ou que refaça sua cédula depois que você for embora. De noite não te sentirás seguro”, acrescentou.
Os dois ruandeses citam numerosos exemplos de como o autoritarismo de Kagame criou um Estado militarizado que recorre ao terror e à intimidação para controlar a população. O Departamento de Inteligência tem vastas redes de informantes civis para esse fim. O próprio Nshimyimana foi vítima do sistema. Após fugir de Ruanda pela segunda vez em 1994 teve de regressar por causa de um foco de cólera que surgiu no acampamento de refugiados da República Democrática do Congo onde vivia.
“Cheguei em casa são e salvo, mas minha família pensou que devia me declarar como retornado se quisesse ficar. O governo está a par de todas as pessoas que o criticam. Meu pai ficou com medo de que o matassem se descobrissem que eu estava ali”, disse Nshimyimana. Kayitare concorda com seu amigo. “É um ambiente selvagem. É matar ou morrer. Mandaram que eu eliminasse os ossos de pessoas assassinadas”, contou.
Anistia Internacional, Human Rights Watch e organizações religiosas divulgaram informes com detalhes de desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias entraves à oposição para que não pudesse registrar seus partidos junto às autoridades competentes. A organização representada por Kayitare, Plataforma Ruandesa para o Diálogo, a Verdade e a Justiça, afirma que Kagame se concentrou em sua imagem internacional e na do país para mostrar que funciona bem.
Tanto ele como Nshimyimana disseram que as figuras internacionais de destaque que visitam o país são manipuladas. “Nunca as deixam sozinhas para que possam ver o que quiserem. Sempre estão acompanhadas”, afirmou Kayitare. Os relações públicas do presidente ruandês levam a que se proponha a volta dos refugiados que ainda estão em países como África do Sul, Tanzânia e Zâmbia.
“Kagame quer que voltemos para resolver o problema das críticas dos refugiados. Constrói uma boa imagem sua e depois diz que somos cães, moscas e sapos no parlamento”, disse Kayitare. O presidente declarou que os refugiados ruandeses são como desperdícios humanos que devem ser excretados. “A repatriação nos deixa nas mãos de Kagame. Terá acesso a pessoas que pretende silenciar” alertou Kayitare. “Acredita que preciso fazer consultas para voltar para casa? Se pudesse, não estaria aqui conversando com você. Há tempos teria retornado”, afirmou Nshimyimana.
Os problemas de Ruanda não se originam em questões econômicas ou por dificuldades no acesso à terra, mas se devem à falta de paz, segundo Kayitare. “O medo infundido nos cidadãos cala tão fundo que Kagame seguirá no poder. Desta forma, se trata de uma ditadura, tal é o medo das pessoas que não podem imaginar outra coisa”, afirmou. Envolverde/IPS
* Robin Leslie é responsável por comunicações e assessoramento legal do Serviço Jesuíta para Refugiados para a África Austral, uma organização católica que acompanha, ajuda e defende os direitos dos refugiados e exilados forçados.