Você acha que, num país pobre e carente de desenvolvimento como o Brasil, é mesmo prioritário ficar discutindo os níveis de poluentes nos combustíveis? Por exemplo, se você soubesse que, há um ano atrás, a agência brasileira que regula os combustíveis, temendo prejuízos financeiros, deu um prazo maior para que a Petrobras se adaptasse para produzir um diesel mais limpo, você acharia um absurdo? Ou acha que deveríamos ser mais tolerantes com uma empresa que produz tanto para o Brasil?
Agora… e se você ficasse sabendo que, por causa daquela decisão de dar mais prazo, 14.000 pessoas vão morrer ao longo de quatro anos? Sua opinião continua a mesma?
É apostando que a resposta é “não” que muitos pesquisadores tem buscado quantificar danos à saúde, em busca de argumentos contundentes para sensibilizar a gestão e a opinião pública sobre temas relacionados ao meio ambiente. “Nós acabamos de entregar para o Ministério da Saúde o quanto custou não atender a resolução 315 do Diesel Limpo no Brasil. Dá um excesso de 14.000 mortes por poluição no país”, diz Paulo Saldiva, Coordenador do Laboratório de Poluição Atmosférica Ambiental da Faculdade de Medicina da USP. “Isso nunca foi levado em discussão. Se fosse, você acha que alguém assinaria um acordo autorizando a morte de 14.000 pessoas?”.
A metereologista Micheline Coelho, uma das cientistas alistadas na cruzada de Saldiva, desenvolveu o Modelo Brasileiro de Clima e Saúde para relacionar três variáveis: condições meteorológicas, impacto à saúde pública e níveis de poluição. “Se eu fosse fazer isso em uma cidade limpa, usaria somente a variável metereológica e a saúde. Mas, em grandes centros, é importante que as três variáveis sejam medidas juntas. Infelizmente, as pessoas que moram em São Paulo estão o tempo todo sob o efeito das variáveis climáticas e da poluição.”
Através de seus estudos, Micheline consegue prever com quatro dias de antecedência o acréscimo de internações em hospitais públicos por doenças respiratórias. “O legal é que, com isso, os hospitais podem se preparar, realocando médicos ou reservando leitos”, explica. Para se ter uma ideia do tamanho do impacto, segundo o modelo, se em três dias uma massa polar provoca uma queda brusca de 15 graus na temperatura, somada ao efeito da poluição, o aumento de internações é de 95%.
A qualidade do ar já reduziu a expectativa de vida do paulistano em um ano e meio em média – o equivalente a fumar quatro cigarros por dia. Em termos econômicos, isso significa um prejuízo anual de cerca de R$ 400 milhões, com internações, medicamentos, faltas no trabalho ou perda da produtividade. A conta foi feita pela professora de Engenharia da Unifesp Diadema, Simone Miraglia. “É uma questão muito polêmica falar em valor de vida. Na verdade, não precisaria nem falar. Bastava eu dizer que existe o dano, que a gestão pública deveria se focar nele. Como isso, por si só, infelizmente não é uma informação suficiente, a gente tenta dar uma ideia do montante econômico para justificar outros investimentos”.
Com R$ 400 milhões seria possível construir 40 ciclovias como a recém inaugurada na Marginal Pinheiros, que possui 14 quilômetros. Ou mais de 18 parques lineares como o Zilda Arns, localizado na Zona Leste da cidade, que soma 224.000 metros quadrados de área e beneficia diretamente 300.000 pessoas. Ou, ainda, 12 novos conjuntos de vagões do metrô, como os que circulam na linha verde, com capacidade para o transporte de 24.000 passageiros – e o aumento de 50% na concentração de poluentes registrado nas greves do metrô de 1986 a 2006 são prova de que metrô faz bem à saúde.
De acordo com Saldiva, é fundamental que o sistema de saúde se prepare para estas novas demandas. Já a gestão pública deve priorizar o investimento na pesquisa de tecnologias menos poluentes, áreas verdes e, principalmente, transporte coletivo. O transporte individual consome 30 vezes mais combustível por passageiro do que o ônibus e 70 vezes mais energia se comparado ao metrô. Segundo dados da Agência Ambiental do Estado de São Paulo, a Cetesb, 90% dos poluentes gasosos são originados a partir da queima de combustíveis fósseis nos veículos automotivos.
Vítimas da poluição
No Serviço de Verificação de Óbitos do Hospital das Clínicas (SVO), cerca de 14.000 corpos são autopsiados por ano. Por lá, passam os casos de morte natural, porém com causa indefinida ou aqueles que não tiveram assistência médica no momento da morte. Há mais de 30 anos, João Teixeira é um dos técnicos que cuidam do serviço: abre o corpo, retira o que é necessário para análise, envia para o laboratório e fecha. João pediu que a gente não deixasse de dizer que ele não é médico, nem especialista. “Mas é a experiência do dia a dia, né?”, conta. “Os médicos já confiam na gente. Chegam perguntando qual é a causa da morte.”.
Nessas três décadas, João viu muita coisa mudar em São Paulo e na rotina de trabalho. “Antigamente você abria o caso e olhava o pulmão. Se estava escurecido, a gente já classificava aquela pessoa como um fumante. Hoje já fica dificil você classificar se essa pessoa morreu por problemas relacionados ao vício do fumo ou da poluição”. Além disso, diz que conforme a garoa foi diminuindo e começaram estas variações extremas entre dias quentes e frios o número de mortes aumentou. “Normalmente você vem pra sala e tem cinco, seis cadáveres para serem autopsiados, mas, nas épocas de frio, chega a 12, 15. A maioria idosos”.
O que acontece no SVO é reflexo do que acontece em toda a capital. Diariamente, 35 pessoas são internadas em hospitais públicos e 12 pessoas morrem por doenças relacionadas à poluição. As principais são as respiratórias (como asma e bronquite), cardiovasculares (como arritmia e enfarto), e câncer do pulmão. Entre os mais vulneráveis às consequências de respirar um ar que possui, na média, três vezes mais o nível de partículas finas tolerado pela Organização Mundial da Saúde (10 microgramas por metro cúbico) estão os idosos acima de 65 anos, crianças abaixo de 5 anos e os mais pobres. “Na Zona Leste de São Paulo morre-se seis vezes mais do que na Cidade Jardim por doenças relacionadas à poluição”, atesta Paulo Saldiva, Coordenador do Laboratório de Poluição da Faculdade de Medicina da USP.
Sérgio Branco Mituo, 71 anos, é morador há mais de 42 anos da rua General Olimpo e dono de um comércio localizado a três quarteirões da residência, de onde viu o elevado Costa e Silva, o Minhocão, ser construído. “Cortinas, janelas, é tudo preto em casa. E é uma sujeira grossa, parece óleo mesmo. O cheiro e o barulho também são horríveis”, relata. Há três meses, Mituo abandonou o apartamento, que fica de frente para a via, por onde passam cerca de 40.000 carros diariamente, segundo dados da CET. “Minha esposa faleceu de edema pulmonar e nunca fumou um cigarro. Não quero mais ficar aqui.”
Quanto maior a exposição a vias expressas e corredores de ônibus, maior o risco. Paula Ferreira, 28 anos, morava em uma rua sem saída. Vinte dias após se mudar para uma rua de grande tráfego, localizada no extremo oeste de São Paulo, no distrito do Jaguaré, as idas ao Pronto Socorro da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo se tornaram frequentes. Duas semanas morando lá e meus dois meninos começaram a ter problemas repiratórios”. Mãe de Fernando, 7 anos, e Claudio, 1 ano, a empregada doméstica já precisou faltar diversas vezes no trabalho e investiu em um aparelho de inalação para evitar a extensa fila dos hospitais. “Agora, quando vejo que vai começar a dar crises já faço uma inalação de manhã e outra à noite”.
Para quem não está acostumado, os efeitos são ainda mais agressivos. Angélica Neres de Lima, 21 anos, veio de Ubatuba, litoral paulista, acompanhando o marido que arrumou emprego na capital. Em menos de um mês, sua filha de 3 anos, Yngrid Neres, já fez sete inalações e precisou utilizar bombas para asma durante o dia. Já a mais nova, Jheamy Lee Neres, de 1 ano, ficou internada por dois dias com pneumonia. Segundo o médico que atendeu as pacientes, Dr. Victor Lion, do Pronto Socorro da Santa Casa de Misericórdia, além dos medicamentos, é preciso esperar que o organismo das crianças se adapte com as mudanças de clima e qualidade do ar.
Quem mora em São Paulo ainda enfrenta problemas de médio e longo prazo que não são contabilizados, conforme salienta Saldiva. “Se o ar condicionado do carro está desligado, você chega em casa moído. Por quê? Isso tem explicação fisiológica: anos e qualidade a menos de vida”. Ricardo Laranjeiras, 43 anos, desde que nasceu é morador da rua Apa, esquina com a avenida São João, também pertinho do Minhocão. O comerciante tem uma característica comum entre os moradores do local: fala alto. Não é à toa. Diariamente convive com um ruído de 81 decibéis, quando o recomendado pela OMS é de até 75. “Em casa é assim, a TV é alta, a gente fala alto, tem que se adaptar, né?”. No prédio em que mora, todos os apartamentos tiveram suas sacadas fechadas com janelas de vidro. Onze e meia da manhã e apenas uma, dos dez andares, estava aberta. “Essa é a melhor forma de aguentar. Nos finais de semana a gente abre”.
Tosse seca, irritação nos olhos, nariz ou garganta e cansaço são efeitos comuns desse desgaste. Até a prática de exercício físico em locais inadequados pode ser um grande problema. “O Parque do Ibirapuera é um dos locais de maior concentração de poluentes devido ao entorno de veículos. Em dias secos, por exemplo, o atleta tem maior propensão para arritmia cardíaca, pois diminui a quantidade de oxigenação”, ressalta o Acary Souza Bulle Oliveira, médico da Unifesp.
*Publicado originalmente no !sso Não é Normal