Brasil, 1999: tecendo fios
Em tempo de buscas por conhecimento científico em “organizações responsáveis”, me deparei com o termo “business social responsibility”, traduzido para o Brasil como responsabilidade social empresarial ou responsabilidade social corporativa. Na época, em buscas no Yahoo e no Altavista sobre o tema no Brasil, dois sites apareciam: o do Ibase, em torno do tema do Balanço Social, e o do Instituto Ethos, em torno dos Indicadores Ethos de Responsabilidade Social. A pesquisa durante o doutorado no Instituto de Administração e Gerência (IAG), da PUC-Rio, contribuiu para conhecer e divulgar que havia diversas perspectivas e entendimentos, tanto no Brasil como no exterior, sobre o que significava e como se exercia a responsabilidade social empresarial. A pesquisa gerou um mapeamento de perspectivas brasileiras e estrangeiras em um metamodelo para a responsabilidade social empresarial, publicado no Brasil e, mais recentemente, no exterior.
Em síntese, os resultados mostraram que há entendimentos de que a responsabilidade social empresarial é uma ação pós-lucro, não inserida nos processos de negócio, bem similar ao que se propagava no Brasil no final do Século 20. Alternativamente, há as perspectivas pré-lucro, em que se concebe a responsabilidade social nos processos de negócio, requerendo novas competências, modelos e tecnologias ambientais, sociais e econômicas para a inovação empresarial. Em ambas as vertentes, pós-lucro e pré-lucro, da responsabilidade social empresarial, variando conforme o contexto legal, econômico, ambiental, social e cultural, dependendo do tipo e porte do empreendimento, podemos contemplar três níveis de desafios éticos nas relações empresa-sociedade. O primeiro nível de desafio ético é o cumprimento da lei, incluindo as de abrangência local, nacional e internacional, como são os acordos internacionais em órgãos multilaterais. O segundo nível de desafio ético é ir além da lei no contexto temporal e espacial em que a empresa está operando, produzindo e comercializando, já atendendo a novas expectativas sociais nesse contexto e avançando políticas e práticas em relação ao que a lei determina. O terceiro nível de desafio ético é atuar de forma coerente com a aspiração a ideais éticos, que nem o contexto de operação, produção e comercialização da empresa demanda ainda, muito menos é exigido em lei, mas emerge da consciência diferenciada de líderes que possam influenciar decisões na empresa.
Brasil, 2011: tecendo fios
Um novo retrato sobre responsabilidade social. Encontra-se, neste país, uma impressionante quantidade de prêmios, certificados, cartas de princípios, códigos de ética, marcas e selos de responsabilidade social, relatórios de sustentabilidade, índices de ações de empresas selecionadas pela política de responsabilidade social, uma lista enorme de sites e links, de artigos, reportagens, eventos, cursos, livros, vídeos.
Brasil a partir da Holanda, 2009, 2010 e 2011: tecendo fios
A partir de lá, como representante da América Latina em pesquisas sobre responsabilidade social empresarial, me deparo com perguntas sobre como é que o Brasil conseguiu tantos casos de repercussão em políticas e práticas de responsabilidade social empresarial, a exemplo da premiação de relatórios de sustentabilidade promovida pela Global Reporting Initiative e pelo grande números de candidatos brasileiros a esta premiação. Respondo ao renomado especialista, ex-presidente de empresa na área de finanças e com grande influência internacional: “o Brasil não tem limites, somos invasivos, somos intrometidos, somos curiosos e não suficientemente ‘limitados’ a formatos pré-estabelecidos, inovando e articulando ideias com pessoas de vários segmentos (governo, políticos, membros do judiciário, empresários, consultores, educadores, agentes da sociedade civil, donas de casa, jornalistas…). É essa a minha visão”.
Brasil, daqui e agora em diante: desatando nós
O que nos falta caminhar nesse terreno do discurso e da prática da responsabilidade social, no contexto brasileiro? Respondo que é lidar com a inconsistência, a incoerência e a incongruência de responsabilidades sociais entre acionistas, diretores, empregados, especialistas consultores, fornecedores, compradores, financiadores, isso no âmbito das empresas. E mais, com a inconsistência, a incoerência e a incongruência de responsabilidades sociais entre Poder Público Executivo, Judiciário e Legislativo (federal, estadual e municipal), instituições de educação, famílias e detentores de capital e agentes financeiros.
Os resultados das pesquisas que venho me envolvendo desde 1999 mostram que as perspectivas e práticas de responsabilidade social empresarial podem ser compreendidas como relacionadas com as culturas e os contextos institucionais em que as empresas estão situadas. Neste sentido, cultura se forma e se transforma com o desenvolvimento da cidadania em todas as esferas sociais (política, econômica, doméstica, comunitária, governamental, entre outras), sendo que a educação para a responsabilidade social coletiva é inerente ao desenvolvimento de uma cultura cidadã.
A lei é uma expressão do grau de desenvolvimento de uma sociedade, pois não aceitamos mais aquilo que foi lei no passado (escravidão, por exemplo) e que não é mais coerente com o presente e com o futuro que queremos. Entretanto, a memória cultural desse tempo ditatorial, escravagista está efetivamente fora de nosso tempo atual nas práticas domésticas, nas práticas empresarias, nas práticas e modelos de políticas públicas, nas compras, investimentos e financiamentos públicos e privados? Como mudar uma cultura em que a informação e cultura divulgadas nos grandes meios de comunicação reproduzem lógicas de dominação, violência, exclusão social, seja em novelas, reportagens, seriados ou propagandas? E os lançamentos de novos produtos e linhas de produtos, insistentemente efêmeros, de curta durabilidade ou fruto de modismos, mesmo que já anacrônicos em meio a uma mobilização social pelo ambientalismo, pela qualidade social e pela viabilidade econômica em padrões ecológicos? Será que não temos leis ultrapassadas para construirmos uma sociedade sustentável, seja no nível local, regional, nacional ou internacional? Será que não temos uma cultura em nossos tempos que não se mostra coerente com os discursos e exemplos de políticas e práticas orientados para a responsabilidade social? Como um Conselho de Administração deve incorporar de forma integral uma ética da responsabilidade social em seu processo decisório? Como agir assim diante de investidores, financiadores, diretores, compradores, fornecedores e de governantes que não pensam, não valorizam e nem planejam agir dessa forma? Como criar um ambiente empresarial e institucional coerente com organizações socialmente responsáveis?
Para exemplificar incoerências do contexto institucional e da cultura brasileiros, começo lendo o Artigo 14 da Constituição Federal, Capítulo IV – Dos Direitos Políticos, no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, em especial o Parágrafo 4°: “São inelegíveis: os inalistáveis e os analfabetos”. Hummm…. quer dizer que não precisa estudar para ser elegível…!!! Então vamos conhecer os que são elegíveis na Carta Magna, como nos determina o § 3º do mesmo Artigo 14 e que aponta uma ênfase: na diferenciação da faixa etária para determinados cargos; ter nacionalidade brasileira; ter pleno exercício dos direitos políticos; ter domicílio eleitoral na circunscrição; ter realizado o alistamento eleitoral; além da necessária filiação partidária. Ou seja, de fato, há uma incoerência, por um lado, nos critérios para elegibilidade e, por outro lado, em uma enorme e longa caminhada das políticas públicas e empresariais brasileiras no sentido da escolarização da população, seja para fazer concursos públicos, para trabalhar nas empresas, para ser empreendedor. Entretanto, sinto muito, não precisa estudar para ser eleito membro do Poder Legislativo ou chefe do Poder Executivo nos 5.565 municípios, nos 27 Estados e na União.
É esta incoerência que pessoalmente encontrei como professora, pesquisadora e extensionista, em várias ocasiões em que testemunhei o despreparo dos eleitos para vereador e para prefeito, não conseguindo nem compreender ou, menos ainda, dar valor, aos cursos de capacitação da universidade para agentes públicos e da sociedade civil em torno de planejamento governamental, políticas urbanas, orçamento público e outros tópicos. A boa e interessada audiência dos cursos girava em torno de alguns membros de conselhos municipais, quase sempre os mesmos ativistas de sempre, em sua minoria, ou de lideranças de organizações da sociedade civil. Nos bastidores que conheci em reuniões com secretários municipais, vereadores e prefeitos, sempre a mesma história: alguns consultores, com reserva de mercado por vínculos pessoais e de longa data, prestando serviços que o serviço público deveria ter competência e quadro qualificado de agentes públicos para prestar; e, de outro lado, os bloqueadores e sabotadores da atuação e difusão de conhecimento público e gratuito oferecido pelas universidades federais, a partir de professores e estudantes cidadãos e estudiosos nos avanços do tema de extensão e de pesquisa.
Passamos para exemplos de grandes empreendimentos públicos, em que empreiteiras e consultores entram no “mercado de negócios” e em nenhum momento são deles exigidos requisitos de padrões de qualidade nas condições de trabalho, ética e transparência na gestão das empresas que atuam nos empreendimentos públicos, algo que é tão ensinado e propagado por universidades, pelo Sebrae, pelo Sesi, entre outras instituições de conhecimento. Ou seja, o governo, pelo orçamento público, é efetivamente um poderoso promotor de modelos e práticas empresariais, seja em um sentido ou em outro sentido.
Qual é o sentido que se propõe para os contratados e financiados com recursos públicos quanto à responsabilidade social nos processos de negócios, nas políticas de compensação ambiental, social e econômica no território em que estejam atuando? Se considerarmos as condições de transparência e diálogo com os diversos atores que participam de um empreendimento, não vemos também exigência de modelos de governança e relatórios de transparência empresarial ou de sustentabilidade pelo Poder Público e nem mesmo pelas próprias empresas contratantes ou pelos agentes financiadores do projeto. Há diversos projetos de lei na Câmara Federal que contribuem nesse sentido de uma responsabilidade social multiatores, ou seja, em empresas, governo e na sociedade civil, mas todos emperrados em determinadas comissões parlamentares, em especial as que lidam com interesses “econômicos”. Quando olhamos os bastidores desses projetos de lei, mesmo algumas associações empresariais e ONGs, que se classificam publicamente como promotoras da responsabilidade social, fazem lobby para que não haja avanços no marco legal pró-responsabilidade social e sustentabilidade brasileiras.
Fica a questão: quem perde e quem ganha em não termos avanços no campo institucional e marco legal brasileiro que o torne mais coerente e consistente com modelos de desenvolvimento sustentável? Será porque estaríamos criando um empoderamento de competências institucionais e sociais nacionais que excluiria a necessidade de importarmos modelos e ferramentas de gestão, de consultoria e de dependência intelectual, caríssimos e acessíveis somente a uma elite econômica de famílias e empresários? Será que não temos aqui no Brasil conhecimento suficiente para desenvolvermos um pacto social visando a uma reforma institucional pró-responsabilidade social no marco legal brasileiro e nas políticas públicas, que possa repercutir positivamente nos processos decisórios públicos e privados sobre investimentos, empreendimentos, tributação, construção civil e comércio?
Passamos para o contexto do mercado da moda, um segmento tão propagado como um indutor de cultura ou de reprodutor de tendências e ainda vemos membros de conselhos de administração ou de diretores de empresas aprovarem contratos de publicidade e linhas de produto com riscos ambientais e sociais. Como se dá a qualificação dos que estão imbuídos de poder de decisão nos investimentos e nas políticas e práticas de gestão? Que escolas de nível superior, no Brasil e no exterior, são essas em que se formam os administradores, engenheiros, MBAs e especialistas e que não incluem a sustentabilidade, a ética da responsabilidade social de forma transversal no currículo e nos objetivos de formação (não apenas em uma disciplina isolada, preferencialmente optativa ou eletiva)? Precisamos enviar para instituições de educação no exterior para formarmos os nossos decisores de conselhos de administração e diretores de empresas no Brasil? Que livros estão lendo, que modelos de negócio estão aprendendo ou reproduzindo? Em que contexto institucional estão situados os casos (cases) que estudam em suas escolas made in fora do Brasil? O que as Diretrizes Curriculares no Brasil, para a educação básica, profissional e superior, estão propondo para a formação cidadã? O que os exames nacionais e de seleção avaliam em termos de capacidade de interpretação, reflexão e posicionamento crítico para um profissional cidadão?
Passamos agora para as políticas tributárias dos governos federal, estaduais e municipais, que indicam e influenciam as decisões das famílias, dos empreendedores, dos proprietários, dos agentes financeiros, dos profissionais, de todos. São também instrumentos que carregam uma mensagem, uma pedagogia econômica e cultural para ir, seja em um ou em outros caminhos, influenciando as decisões que tomamos e os limites que temos no exercício de contribuintes cidadãos ou não. Vejamos o tamanho da base tributária, a incoerência, a desigualdade na tributação, a aposta no ônus tributário sobre o trabalho, o fluxo dos produtos e rendas da economia, ao invés de tributar o estoque, a retenção, a apropriação, a desigualdade, o patrimônio, a acumulação. Não se diferencia, no atual marco legal tributário, o grau de cuidado social, ambiental e econômico do contribuinte, nem se premia com descontos no imposto de renda os que investem em educação e livros para os seus filhos, em comparação com os que temem a doença (sem limites para despesas com planos de saúde) como condição sine qua non de sua existência cotidiana.
Tudo acima, combinado, entre outros possíveis exemplos das reformas brasileiras que precisamos refletir e nos pactuar socialmente, nos ensina que ainda temos, no contexto brasileiro, uma desvalorização social, econômica e política da Educação (com letra maiúscula). Como recomendação, todos os pontos acima levantados caminham em uma direção: educação para a liberdade com alteridade e responsabilidade social, para o sentido coletivo, para o território em que vivemos, o qual não é só meu, só seu, só nosso, mas de todos que o fizeram, viveram, vivem e viverão, seja no rural ou no urbano. As instituições de educação infantil, básica e superior, além das profissionalizantes, são concebidas na Carta Magna do Brasil diante de seus fins de interesse público. Apelo para que a reforma tributária, a reforma política e os novos rumos nas políticas públicas incluam esta reflexão, pois a Educação beneficia não apenas o indivíduo, mas a sociedade, a natureza, a política, a coletividade, o ambiente. Contem com meu desejo, minhas possibilidades, meu dever, minha crença e minha ação cidadã, como também de tantos brasileiros e brasileiras, em especial dos que educam em família, na comunidade, nas escolas, nas empresas, na sociedade civil e no governo.
* Patrícia Almeida Ashley, brasileira, mãe, professora, contribuinte e eleitora. Colunista de Plurale. Professora adjunta do Departamento de Análise Geoambiental do Instituto de Geociências da Universidade Federal Fluminense (UFF), com foco em Responsabilidade Socioambiental, coordenadora do livro “Ética e Responsabilidade Social nos Negócios”. Holanda: Prince Claus em Desenvolvimento e Equidade – 2009-2011- International Institute of Social Studies of Erasmus University, Rotterdam.
* Este texto é parte integrante da revista Plurale, edição 23, de junho de 2011.