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Revista impulsiona as mulheres sírias para o futuro

Duas meninas veem passar uma mulher coberta com véu em Aleppo, em agosto de 2014. A revista síria Saiedet Souria quer dar às mulheres a informação que precisam para terem uma visão mais ampla do mundo e uma voz na revolução que em boa parte deixou de lado seus pontos de vista. Foto: Shelly Kittleson/IPS
Duas meninas veem passar uma mulher coberta com véu em Aleppo, em agosto de 2014. A revista síria Saiedet Souria quer dar às mulheres a informação que precisam para terem uma visão mais ampla do mundo e uma voz na revolução que em boa parte deixou de lado seus pontos de vista. Foto: Shelly Kittleson/IPS

 

Gaziantep, Turquia, 18/11/2014 – Para a maioria das mulheres sírias a guerra é um desastre. Para outras, porém, também é uma experiência libertadora. Yasmine Merei, editora-executiva da revista síria Saiedet Souria, dirigida ao público feminino, está entre aquelas para as quais o revés que sofreram os papéis familiares tradicionais e deixar de lado a cultura do medo trouxeram efeitos positivos.

Muitas mulheres sírias foram obrigadas a se converterem em chefes de família, pois seus maridos estão desaparecidos, presos, feridos ou mortos, assinalou Merei à IPS. Mas, ainda que valerem-se por si mesmas possa ser aterrador, também pode libertá-las das correntes tradicionais que lhes impuseram.

“Se teu marido não é quem paga tudo e tem esse papel específico na sociedade, ele já não tem direito de lhe dizer o que tem de fazer”, acrescentou Mohammad Mallak, editor-chefe da revista, cujo nome significa “mulheres sírias”, fundada por ele no começo deste ano. Mallak também dirige a revista Dawda (“ruído”), no mesmo escritório, na cidade turca de Gaziantep.

Poucas mulheres que aparecem nas fotografias da revista têm suas cabeças cobertas. A própria Merei deixou de usar o lenço que cobria a sua no começo do ano, após usá-lo “por cerca de 20 anos”, devido à sua criação dentro de uma família sunita pobre e conservadora. Merei contou que começou a participar dos protestos de 2011 por serem injustas as leis sírias, especialmente com relação às mulheres. Entre elas citou as que deixam impunes as mortes de honra.

Como muitas mulheres sírias, Merei, que fez mestrado em linguística, se converteu na responsável por manter sua família, enviando dinheiro à sua mãe e aos irmãos, ambos presos por protestarem e libertados somente depois de pagaram elevados subornos. Seu velho pai morreu pouco depois de também ter sido preso, e a família foi obrigada a abandonar sua casa.

Porém, contar histórias de mulheres não significa simplesmente vítimas femininas contarem os horrores e as penúrias de suas vidas. Embora não recuse histórias de mulheres que sofreram muito, Merei quer, principalmente, dar ao público feminino a informação que ela precisa para ter uma visão mais ampla do mundo e uma voz em uma revolução que, em boa parte, não ouviu seus pontos de vista.

Assim, nas páginas da revista impressa e em sua página no Facebook convivem um relato de primeira mão de uma mulher que foi torturada nas prisões do regime sírio, junto com uma crítica de A Mulher Eunuco, de Germaine Greer, e uma entrevista com uma oficial de polícia que trabalha nas áreas controladas pela oposição.

Há artigos sobre como a dependência econômica forçada afeta negativamente tanto as mulheres quanto as economias nacionais em geral, e outros que analisam os potenciais problemas sanitários que surgem nos acampamentos de refugiados, como a tuberculose. Também há uma coluna publicada regularmente por uma advogada que está em áreas do regime e que antes passou 13 anos na prisão por motivos políticos, bem como dois artigos traduzidos da imprensa internacional.

A revista chega a ter cerca de 50 páginas por exemplar, e em cada edição Souria publica artigos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (Cedaw), adotada em1979 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), e na próxima edição a publicará na íntegra, afirmou Merei.

A revista tem tiragem entre 4.500 e cinco mil exemplares por edição (aproximadamente 3.500 são distribuídos dentro da Síria por intermédio de uma de suas quatro sucursais). A isso se soma uma página no Facebook com cerca de 40 mil seguidoras, onde os artigos são publicados regularmente.

Para um país onde Facebook e YouTube estiveram proibidos entre 2007 e começo de fevereiro de 2011, e onde a internet e a eletricidade escasseiam, trata-se de um número significativo. A Síria figura na lista de inimigos da internet desde que a organização Repórteres Sem Fronteiras a criou em 2006.

Além de suas sucursais em Daraa, Damasco, Suweida e Qamishli, a revista vai abrir outra em Aleppo, ressaltou Merei, explicando que “as dez mulheres que trabalham para nós dentro da revista recebem um salário regular de US$ 200 e são responsáveis por distribuir as cópias, além de convocar outras mulheres para reuniões e iniciativas semelhantes”. Os exemplares são entregues em mercados e conselhos locais, e em pelo menos um desses lugares as mulheres têm um sistema para fazer recircular as limitadas cópias tão logo as lêem, explicou Merei.

A Repórteres Sem Fronteiras realizou dois painéis para a revista, em abril e setembro deste ano, e ofereceu doação de equipamentos, mas “nós temos equipamento básico: impressoras, computadores” comprados a partir de um investimento inicial de Mallak, informou a editora. Mas “o que realmente precisávamos era papel e tinta para fazer a revista chegar ao maior número possível de mulheres. Então, a Repórteres Sem Fronteiras abriu uma exceção e nos ofereceu isso”, acrescentou.

Segundo Merei, o objetivo “é ajudar as mulheres sírias a recuperarem a confiança em si mesmas”. Essa confiança se viu debilitada pela guerra e pelo uso da “religião” para controlar as mulheres em áreas islâmicas, que, quando ela as visitou pela última vez, no começo deste ano, “eram como se o país tivesse voltado à Idade da Pedra”, recordou. “Sou muçulmana sunita, mas o Islã ali não se parece com nenhum que eu conheço”, observou.

“Um dos principais problemas é que os intelectuais da Síria estão na prisão, no exterior ou mortos”, apontou à IPS um sírio que viveu a maior parte de sua vida fora do país e há pouco decidiu regressar para trabalhar para que tenha aulas universitárias em Aleppo, cidade dominada pela oposição. “Praticamente não há ninguém que estruture nada, ninguém que plante ideias”, acrescentou.

E, segundo Merei, é isto que a revista e suas atividades correlacionadas buscam abordar. “Tentamos dar às sírias o conhecimento que necessitarão no futuro”, resumiu. Envolverde/IPS