Rezando a Deus e ao Estado laico apelando

Cerimônia de candomblé no terreiro Axé Bamgbosè, no município carioca de Duque de Caxias, com a presença de sacerdotes, seminaristas e jovens jesuítas de todo o mundo. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS
Cerimônia de candomblé no terreiro Axé Bamgbosè, no município carioca de Duque de Caxias, com a presença de sacerdotes, seminaristas e jovens jesuítas de todo o mundo. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS

 

Rio de Janeiro, Brasil, 30/7/2013 – Com animosidades desde tempos da colônia, as religiões católica e afrobrasileiras iniciam um processo de mútua aceitação. A esta reconciliação histórica, o papa Francisco colocou gestos e palavras por um interesse comum: enfrentar a expansão de credos evangélicos e neopentecostais. A foto em que Francisco ajustou na cabeça um cocar entregue pelo indígena Ibiraí Pataxó, deu volta ao mundo.

Ivanir dos Santos, um babalaô (sacerdote) do culto africano candomblé, também foi recebido pelo papa no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, como parte de uma aproximação do catolicismo com outros credos e culturas, durante sua visita ao Brasil, entre os dias 22 e 28 deste mês. “Pela primeira vez um representante do candomblé é recebido por um papa. Isso é inédito”, disse aos jornalistas Ivanir, um ativo integrante da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Brasil. “Foi um passo muito importante. Marca um gesto de respeito com as religiões afro e minoritárias”, ressaltou.

Em sua visita, o papa pediu o diálogo inter-religioso e surpreendeu os políticos, entre outros convidados, com uma declaração a favor do Estado laico. “A convivência pacífica entre as diferentes religiões se vê beneficiada pela laicidade do Estado que, sem assumir como própria nenhuma posição confessional, respeita e valoriza a presença do fator religioso na sociedade”, afirmou Francisco.

O papa se referia a dois públicos, segundo a analista política Maria Celina D’Araújo, professora do departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Por um lado, “os setores do Islã mais fundamentalistas, os Estados teocráticos muçulmanos, onde cristãos e a religião católica foram muito combatidos, como no Egito”, disse a analista à IPS. Também foi uma mensagem para a América Latina, e especialmente para o Brasil, onde “o fundamentalismo evangélico cresce muito e com forte participação política”, acrescentou.

Francisco realizou sua primeira viagem papal elegendo como destino o Brasil, onde participou da Jornada Mundial da Juventude. Uma pesquisa do Data Folha, feita às vésperas da chegada do papa, mostrou que 57% dos entrevistados se declararam católicos, contra 64% em 2007, quando da visita de seu antecessor, Bento 16 (2005-2013). No mesmo período, a proporção dos que se declaravam evangélicos pentecostais passou de 17% para 19%, e a de neopentecostais de 5% para 9%. Este fenômeno se repete em outros lugares da América Latina, embora o catolicismo continue sendo a religião dominante.

Evangélicos e neopentecostais também cresceram no campo político. Maria Celina calcula em 30% a representação das forças evangélicas no Congresso, decisivas na hora de votar projetos contra a despenalização do aborto ou pelos direitos reprodutivos e minorias sexuais. “Quando o papa defende o Estado laico, que garanta liberdade religiosa e evite perseguições, está sendo muito pragmático. E a Igreja Católica sabe que está perdendo terreno e que não poderia crescer com partidos fundamentalistas e intolerantes no poder”, pontuou.

Um encontro anterior à Jornada Mundial da Juventude deixou clara a posição católica sobre a liberdade e a diversidade religiosa. No terreiro Axé Bamgbosè, no município carioca de Duque de Caxias, um grupo de sacerdotes do candomblé, entre eles Ivanir dos Santos, se reuniram com padres, seminaristas e jovens da Companhia de Jesus de diversas partes do mundo.

No encontro, do qual a IPS participou, os jesuítas ouviram explicações teológicas sobre o candomblé direto dos representantes da religião trazida para o Brasil pelos africanos escravizados, e reprimida durante a colonização portuguesa justamente por esta ordem católicia, à qual pertence o papa Francisco. Os católicos visitaram os templos dos orixás (ancestrais africanos divinizados que correspondem a elementos da natureza) e até presenciaram uma cerimônia africana.

“Para mim, como para outros, é novo descobrir religiões, outros cultos, outros modos de ver, outras espiritualidades que, provavelmente, há 50 ou 60 anos era uma coisa bem mais escondida ou proibida. Na colônia na América isso também foi proibido e negado”, disse à IPS o jesuíta boliviano Sergio Montes, que participou da cerimônia.

No Brasil, seguidores de cultos africanos como candomblé ou umbanda foram perseguidos, até de forma violenta, ao longo da história, até que em 1970 foi revogada a lei que permitia a repressão policial de suas cerimônias. Hoje, as religiões afrobrasileiras também são perseguidas, mas por setores neopentecostais que interpretam seus rituais como “cultos satânicos”. E esses ataques também se dirigem ao catolicismo.

“Os neopentecostais não respeitam o diferente, se julgam donos da verdade, falam como se Deus só falasse a eles. Isso é fascismo. Não podemos generalizar, mas muitos destes segmentos são muito ruins para a democracia na América Latina e no Brasil”, observou Ivanir à IPS. A abertura católica não é completamente nova. “A Companhia de Jesus ao longo de sua história foi abrindo brechas nisto que agora chamamos de diálogo inter-religioso”, apontou Montes. E recordou as missões jesuítas onde hoje são os territórios de Argentina, Brasil, Bolívia e Paraguai, e também o diálogo mantido com a cultura chinesa.

“Para a Companhia de Jesus não é uma novidade, embora este seja um contexto novo”, afirmou Montes. Segundo este jesuíta, trata-se de um momento propício para colocar em prática diretrizes surgidas do Concilio Vaticano II (1962-1965) e que “começam a tomar corpo”. O diálogo intercultural e inter-religioso foi se aprofundando na América Latina, em particular com as conferências episcopais de Medellín (Colômbia, 1968), Puebla (México, 1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (Brasil, 2007).

“Se enfatizou muito esta possibilidade de conhecermos e reconhecermos, de respeitarmos e não apenas sermos tolerantes… com uma visão forte de que o importante é a humanidade que nos une”, afirmou Montes. “O papa Francisco abriu uma porta muito importante não só para a Igreja, mas para o conjunto das religiões e o conjunto da Humanidade”, destacou.

Ivanir dos Santos também pensa assim. É hora de se unir “pelo respeito à diversidade e contra a intolerância”. E a partir de uma interpretação religiosa. O babalaô tem esperanças. “Não é só o mundo que muda. As religiões têm que mudar. E me parece que neste momento vemos novos sinais”, opinou. Envolverde/IPS