A presidente Dilma Rousseff tentará formar um Ministério que possa chamar de seu em 2012. O que não era o caso daquele com o qual começou a governar: quase 40 ministros, muitos herdados das composições de Lula; milhares de cargos de confiança já devidamente ocupados; 15 partidos na base aliada, todos com expectativas de “direitos” a serem conquistados ao assegurarem uma grande maioria no Congresso Nacional.
A presidente sabe, de sua experiência na Casa Civil de Lula e de seus primeiros dez meses na Presidência da República, quão difícil é o desafio que tem pela frente, à luz de compromissos assumidos em seu discurso de posse: “Estamos construindo um governo onde capacidade profissional, liderança e disposição de servir ao país serão os critérios fundamentais. (…) Serei rígida na defesa do interesse público. Não haverá compromisso com o erro, o desvio e o malfeito. A corrupção será combatida permanentemente, e os órgãos de controle e investigação terão todo o meu respaldo para atuarem com firmeza e autonomia”.
Norberto Bobbio distingue, além do governo do poder visível, que em democracias como a nossa é exercido publicamente, à luz do Sol e sob controle da opinião pública, de duas outras faixas de poder: o poder semissubmerso, esse vasto espaço ocupado pelos órgãos e entidades públicas por meio dos quais se exerce o dia a dia operacional das políticas governamentais; e a faixa de poder invisível, que pode ser dirigido a lutar contra o Estado – organizações criminosas e associações de delinquência de todo tipo –, e um poder invisível formado e organizado não para combater o poder público, mas para extrair benefícios ilícitos e buscar vantagens que uma ação feita à luz do Sol não conseguiria.
O problema, com frequência, são as relações espúrias entre os poderes invisível e semissubmerso, aos quais se refere Bobbio, quando o poder visível não dá sinais muito claros sobre o que constituem comportamentos inaceitáveis na gestão da coisa pública.
A presidente Dilma, a esse respeito, tem dado sinais e tomado decisões que pelo menos a diferenciam da complacência talvez excessiva de seu antecessor. Embora sem nunca perder de vista as limitações que lhe impõe a necessidade de manter unida a sua vasta e heterogênea base aliada.
O tempo dirá como a presidente conseguirá estabelecer um delicado equilíbrio entre essa necessidade e o peso – que sabe potencialmente importante – da opinião pública que se expressa por intermédio da mídia livre e independente. A política tem seus próprios tempos, que podem ser longos, permitindo que certas práticas e determinados comportamentos deitem raízes – para o bem ou para o mal.
Permita-me o eventual leitor uma breve digressão sobre a crise europeia antes de voltar ao Brasil e aos ritmos da economia e da política.
Não é por acaso que os países que enfrentam hoje as maiores dificuldades sejam exatamente os que já tinham, antes da crise que se iniciou em 2007, déficits fiscais e de balanço de pagamento mais expressivos e/ou estoques da dívida pública mais elevados e/ou problemas de competitividade internacional e baixo crescimento.
O euro eliminou a possibilidade de políticas monetária e cambial independentes. Há apenas política fiscal e reformas estruturais. Que agora terão de ser feitas em condições muito mais difíceis. Os tempos da economia e da política convergiram. A lição para eles – e para nós – é que nos momentos de bonança é que se deve procurar diagnosticar e encaminhar soluções para problemas de longo prazo, por mais “irrealista” que isso pareça do ponto de vista político.
Em artigo recente neste Espaço Aberto, comentando a decisão do Banco Central de dar início no final de agosto à trajetória de redução das taxas de juros, mencionei as quatro razões do banco: agravamento maior que o esperado da crise internacional, redução maior que a esperada da taxa de crescimento da economia brasileira, confiança na convergência da inflação para mais próximo do centro da meta ao final de 2012, e confiança no “programa fiscal do governo”. Notei à época que este era o “calcanhar de Aquiles” da estratégia de redução sustentada dos juros reais. Continuo achando. E tomo a liberdade de relembrar uma experiência.
No dia 9 de setembro de 1998, exatas três semanas após a decretação da moratória russa e com a eclosão das graves preocupações com risco sistêmico associadas a problemas com alguns grandes fundos de hedge norte-americanos, o Diário Oficial da União publicou um decreto e uma medida provisória. O decreto criou uma Comissão de Controle Fiscal com amplos poderes para tomar decisões de contenção de gastos ainda nos últimos três meses e três semanas de 1998. A medida provisória, num de seus artigos, diz: “O Poder Executivo apresentará, até 15 de novembro de 1998, Programa de Ajuste Fiscal para o triênio 1999-2001”.
Por que menciono isso?
Primeiro, porque foi esse programa – executado rigorosamente no triênio seguinte – que permitiu que o regime de flutuação cambial e o regime de metas de inflação se consolidassem no Brasil, a partir de 1999, o que beneficiou enormemente o governo Lula.
Segundo, porque creio que algo semelhante, e talvez mais ambicioso, é necessário agora. Um programa fiscal para pelo menos o triênio 2012-2014 que seja crível e executado de forma a prover as bases necessárias para uma estratégia sustentada de redução de taxas de juros nominais e reais, com inflação convergindo para a meta de forma crível. Um programa fiscal para o triênio que falta à atual presidente e que seja a operacionalização do compromisso que assumiu em seu discurso de posse: fazer mais, e melhor, com os recursos existentes, controlar a velocidade de crescimento dos gastos governamentais, mudando sua composição em favor do investimento público.
* Pedro S. Malan é economista. Foi ministro da Fazenda no governo de Fernando Henrique Cardoso.
** *Publicado originalmente no jornal Estado de S. Paulo, no dia 13/11/2011, e retirado do site EcoD.