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Ruído de sabre entre Estados Unidos e Rússia entorpece reunião nuclear

A embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Samantha Power, conversa com o chanceler da Rússia, Serguei Lavrov (direita), e com o representante russo nas Nações Unidas, Vitaly Churkin (de costas), em épocas mais felizes. Foto: UN Photo/Paulo Filgueiras
A embaixadora dos Estados Unidos na ONU, Samantha Power, conversa com o chanceler da Rússia, Serguei Lavrov (direita), e com o representante russo nas Nações Unidas, Vitaly Churkin (de costas), em épocas mais felizes. Foto: UN Photo/Paulo Filgueiras

 

Nações Unidas, 28/4/2014 – A crescente tensão entre Estados Unidos e Rússia pela questão da Ucrânia ameaça desarticular uma das principais iniciativas de paz da Organização das Nações Unidas (ONU): o desarmamento nuclear. As duas principais potências atômicas estão enredadas em disputas constantes às vésperas da reunião do Comitê Preparatório de um tratado para frear a proliferação destas armas de destruição em massa.

Os 13 passos que acordaram em 2000, em uma conferência do Tratado sobre a Não Proliferação das Armas Nucleares (TNP, e os 64 pontos de um plano de ação, bem como o acordo de 2010 para criar uma zona livre de armamento de destruição em massa no Oriente Médio constituíam um bom presságio, disse à IPS o ex-secretário-geral adjunto da ONU para Assuntos de Desarmamento, Jayantha Dhanapala. Contudo, acrescentou, apesar desses êxitos, “o retorno dos Estados Unidos e da Rússia à mentalidade de Guerra Fria e a conduta negativa de todas as potências nucleares converteram a meta de um mundo livre de bombas atômicas em um milagre”.

E, “a menos que o Comitê Preparatório reverta essas tendências abomináveis, a conferência do TNP de 2015 está condenada ao fracasso”, advertiu Dhanapala, que preside as Conferências sobre Ciência e Assuntos Internacionais de Pugwash. Está previsto que o Comitê Preparatório da conferência que no próximo ano revisará o TNP se reúna entre hoje e 9 de maio.

Um resultado positivo depende em grande parte de Estados Unidos, Rússia e outras potências nucleares declaradas, como China, França e Grã-Bretanha, que também são membros permanentes e com direito a veto do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Nem Estados Unidos nem Rússia, os países com maiores arsenais nucleares, cumpriram sua obrigação de negociar a eliminação dessas armas e, na verdade, gastaram milhões de dólares para modernizá-las e estender sua vida útil, disse à IPS a especialista Ray Acheson.

“As armas nucleares são perigosas por natureza, e o risco de serem usadas, por acidente ou propositalmente, merece uma ação de desarmamento urgente”, acrescentou Acheson, diretora do Reaching Critical Will, um programa da Liga Internacional de Mulheres pela Paz e a Liberdade. Durante este ano, os Estados nucleares que são parte do TNP devem informar sobre as atividades concretas que desenvolveram par cumprir as ações de desarmamento previstas no plano de ação desde 2010, detalhou.

O alcance dessas ações de desarmamento que podem ser informadas por esses Estados será um indicador claro da intenção que têm de conduzir e protagonizar esse processo, deduziu Acheson. Mas “nenhuma das manifestações públicas feitas até agora dá razão para acreditar que estses compromissos são levados a sério”, ressaltou.

Alice Slater, representante em Nova York da Fundação para a Paz na Era Nuclear, pontuou à IPS que “há um alarmante ruído de sabres às vésperas da reunião do Comitê Preparatório”. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) está acumulando forças militares para “proteger” a Europa oriental, afirmou.

Os meios de comunicação contam apenas parte da história, justificando os jogos de guerra da Otan, baseando-se nos acontecimentos na Ucrânia. A ex-secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, compara o presidente russo, Vladimir Putin, a Adolf Hitler e a primeira página do jornal The New York Times proclama “Em um eco da Guerra Fria, Obama neutraliza Putin”, descreveu Slater. “Mas há pouquíssima cobertura sobre os temores que desperta na Rússia a expansão da Otan até suas próprias fronteiras e o convite para Ucrânia e Geórgia unirem-se a ela”, acrescentou.

E isto ocorre apesar de dois presidentes dos Estados Unidos, Ronald Reagan (1981-1989) e George Bush (1989-1993), após a queda do Muro de Berlim em 1989, prometerem ao então líder soviético Mikhail Gorbachov que a Otan não se expandiria além do território da Alemanha oriental. Tampouco se informa como os Estados Unidos se retiraram, em 2001, do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos e instalou esses armamentos na Polônia, Romênia e Turquia, acrescentou Slater.

No discurso que fez em 1995, durante uma conferência que se estendeu indefinidamente na vigência do TNP, Dhanapala indicava que “a permanência do tratado não representa a permanência de obrigações desequilibradas nem a permanência de um apartheid nuclear entre os que têm e os que não têm armas atômicas”. E acrescentou que “o que representa é nossa dedicação coletiva à permanência de uma barreira legal internacional contra a proliferação nuclear para que possamos avançar para um mundo livre deste armamento”. Para Slater, inclusive antes dos incidentes entre Estados Unidos e Rússia, o TNP vinha descumprindo as muitas promessas de desarmamento efetuadas em 1970.

Entretanto, essa nova crise pode motivar outros países a pressionarem com maior vigor a favor de um processo que começou em Oslo no ano passado, com a primeira conferência sobre o impacto humanitário das armas nucleares, para expor as catastróficas consequências desse armamento e exigir sua proibição total. Diante de um arsenal de 16 mil ogivas atômicas nas mãos de Rússia e Estados Unidos, os países não nucleares devem multiplicar seus esforços pra conseguir a proibição, ressaltou Slater.

As cinco grandes potências nucleares boicotaram tanto a reunião de Oslo, que teve 127 países participantes, como a do México, que em fevereiro deste ano atraiu 146 nações. A Áustria realizará uma terceira, este ano. Por outro lado, Índia e Paquistão, dois países que contam com armamento nuclear, aderiram a esse novo processo. Para Slater, isso expõe uma contradição crescente dentro do clube nuclear.

Esses países apoiam publicamente o desarmamento e lamentam as catastróficas consequências de uma guerra nuclear nessa nova conversação global sobre seus efeitos humanitários, mas continuam aferrados ao seu suposto, e letal, efeito dissuasivo, acrescentou Slater. O Artigo VI do TNP estabelece que todos os países parte são responsáveis por seu cumprimento.

Acheson disse à IPS que, ao contrário de outras armas de destruição em massa (químicas e biológicas), as nucleares ainda não estão sujeitas a nenhuma proibição legal explícita. “É hora de acabar com essa anomalia que permitimos por muito tempo. a história mostra que as proibições legais de sistemas de armamentos, de sua posse e de seu uso facilitam sua eliminação”.

Quando ilegalizadas, as armas também passam a ser crescentemente vistas como ilegítimas, enfatizou Acheson. Perdem seu status político e, junto com ele, o dinheiro e outros recursos para sua produção, modernização, proliferação e perpetuação. Em um cenário de diferenças cada vez mais amargas entre dois países com arsenais nucleares, é imperativo que os Estados que não os têm liderem a luta para proibi-los, destacou. Envolverde/IPS