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Sabedoria ancestral durante os ciclones na Índia

Uma rara combinação na ilha de Nicobar. Uma família manteve sua moradia tradicional junto a um “abrigo permanente” de concreto entregue pelo governo como ajuda após o tsunami de 2004. Foto: Malini Shankar/IPS
Uma rara combinação na ilha de Nicobar. Uma família manteve sua moradia tradicional junto a um “abrigo permanente” de concreto entregue pelo governo como ajuda após o tsunami de 2004. Foto: Malini Shankar/IPS

 

Port Blair, Índia, 15/5/2014 – Entre maio e novembro, anualmente os piores ciclones costumam atingir o arquipélago indiano das Ilhas Adamã e Nicobar, na baía de Bengala, no sudeste asiático. Os governos locais devem se esforçar para tomar medidas a fim de mitigar os desastres, como armazenamento de alimentos, limpeza dos abrigos, armazenamento de água, infraestrutura de saneamento e evacuação de pessoas em toda a região que margeia a baía.

Os ciclones anunciam as monções, que se desenvolvem com diferentes intensidades durante meses e costumam ser um risco para os seres humanos e os animais. Mas as autoridades podem se deparar com o fato de os evacuados rejeitarem a ajuda alimentar, por não se adaptar aos seus costumes ao serem distribuídas rações não perecíveis e ignorados os conhecimentos nativos a respeito do equilíbrio nutricional.

Por exemplo, na época dos ciclones ou de clima hostil, “os andamaneses recorrem à caça e à coleta”, explicou Anvita Abbi, professor do Centro Linguístico da Faculdade de Línguas, Literatura e Estudos Culturais da Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Délhi. Ele decifrou a língua dos indígenas das Ilhas Andamã e Nicobar. “Quando uma ave em particular canta uma canção, já sabem que têm de caçar tartarugas na praia, em lugar de ir pescar no mar”, contou à IPS.

Os aborígenes se adaptam às condições geomorfológicas e respeitam a benevolência da natureza para resistir aos desastres. O pânico do governo lhes parece inútil, e não surpreende que não se adaptem à sociedade indiana e recusem o contato com um sistema corrupto que favorece uns poucos. A sabedoria tradicional os ajuda literalmente a se manterem salvos.

“Os nicobareses e os jarawa recorrem ao arpão para pescar em águas pouco profundas diante das inclemências do tempo. Têm barcos para alto mar, além de canoas com balancim e/ou caiaques e catamarãs para pesca costeira”, apontou A. Justin, antropólogo do Centro Regional de Estudos Antropológicos da Índia em Port Blair, capital das Ilhas Andamã e Nicobar. Os caiaques e as canoas com balancim são ecológicos por não danificarem os arrecifes de coral em águas rasas.

“Os habitantes da ilha de Chowra são reconhecidos por fabricarem barcos de pesca, pelos quais trocam outros bens e serviços que o dinheiro não pode comprar no distrito de Nicobar”, disse Justin à IPS. “Os andamaneses vão pescar nos arroios e rios quando o mar está bravo”, detalhou Abbi. No Estado indiano de Orissa, na baía de Bengala, as pessoas recorrem a cinco variedades de arroz para complementar as mudanças estacionais que ocorrem na região, propensa aos desastres ambientais.

Outra tradição é a dos soligas, nas colinas do Estado de Karnataka, de recorrer a cultivos alternativos, junto a outros complementares que atuam como pesticidas. Essa comunidade também é reconhecida pela arte de refrigerar alimentos em bambus. Os povos originários de Ladakh refrigeram iogurte elaborado com leite de yak para fazer chá com manteiga. “Para enfrentar o frio de Ladakh, a população local consome alimentos gordurosos e bebe muito chá com manteiga”, explicou à IPS o trabalhador social Chewang Norphel, em Leh.

“As casas são feitas com tijolos de barro secos ao sol, cobertas com o mesmo material e de teto baixo. Outra característica de sua arquitetura ecológica são as janelas e as pequenas portas voltadas para o norte”, acrescentou. O subdiretor da divisão de estudos comunitários do Escritório Nacional de Controle Nutricional, do Instituto Nacional de Nutrição, Avula Laxman, concorda: “De fato os povos autóctones adaptam suas estratégias de cultivo, em especial quando ocorrem desastres naturais como secas e inundações”.

“Adotam diferentes medidas como o consumo de alimentos de baixo custo, redução a ingestão, pedem emprestado dinheiro ou alimentos, segundo sua situação socioeconômica, buscam ajuda do governo, usam grãos armazenados ou reservas de alimentos ou, ainda, recorrem a economias, e inclusive podem emigrar em busca de emprego ou vender bens para comprar comida”, segundo pesquisa do Instituto Nacional de Nutrição, na cidade de Hyderabad, contou Laxman.

A prática de cozinhar e comer em comunidade se baseia no costume de compartilhar recursos. O individualismo é odioso para os povos originários deste país. Outra prática que “transferiram como tecnologia de baixo custo” para modernizar a humanidade são os bancos de leite materno. A sabedoria ancestral indica que se uma mãe morre no parto e seu filho sobrevive, outra mulher da comunidade que esteja amamentando, ou mesmo no hospital, assume essa responsabilidade. Mesmo se uma mulher não tem leite suficiente para seu bebê, outra a substitui e lhe oferece esse alimento fundamental e lhe cria resiliência.

Na sociedade jarawa, de fato, todas as mães que estão amamentando alimentam todos os bebês para criar um laço com as novas gerações, segundo o livro Andaman and Nicobar Islands in the 20th Century, de Kiran Dhingra. “Os laços de parentesco evoluíram, e não surpreende que as mulheres lactantes que estão em uma das ilhas tenham que cuidar das crianças das que foram trabalhar em Port Blair. Por isso não chama a atenção que amamentem outros bebês”, disse Abbi.

A tradição permeia diversos setores da sociedade indiana, transcende barreiras de casta e credos. Ali tem origem a ideia de que não há órfãos nos povos autóctones, ainda se tem “expressões precisas para a perda de irmãos e parentes”, afirmou. “Os aborígines tentam adaptar culturas urbanas e rurais devido à usurpação e migração de moradores do campo para suas terras. A cultura autóctone única mudou totalmente”, pontuou Laxman.

“Devido aos programas do Sistema de Distribuição Pública, os povos autóctones são obrigados a comer arroz de forma permanente, pois é de fácil acesso em lojas com preço fixo”, disse o funcionário de nutrição. Assim, “os indígenas mudam um estilo de vida saudável por outro de maior estresse. Isso se observou especialmente entre os indígenas de Kerala, aos quais gerou estresse, insegurança, hipertensão e até diabetes”, concluiu.

“Com base na lei de oferta e procura do mercado que os economistas usam, os jarawas vivem em opulência, porque a oferta e a demanda de suas necessidades lhes são favoráveis”, destacou Abbi. “A floresta lhes oferece mais do que o suficiente em relação ao que precisam para viver bem. Os economistas dizem que chegar a um equilíbrio entre oferta e procura é o selo do desenvolvimento. Isso ocorre na floresta. Não precisam, e não querem nosso sistema que cria submissão”, acrescentou. Envolverde/IPS