O neoliberalismo deu um tiro de misericórdia no Estado de bem-estar social. Destruiu os vínculos societários nas relações de trabalho, deslegitimou a representação sindical, deslocou o público para o privado. O que era direito do cidadão, como a saúde, passou a depender das relações de mercado e da iniciativa pessoal do consumidor.
Quem não tem plano privado de saúde entra na planilha dos cemitérios. Hoje, 40 milhões de brasileiros desembolsam, todo mês, considerável quantia, convictos de que, doentes, serão atendidos com a mesma presteza e gentileza com que foram assediados pelos corretores das empresas de saúde privada.
Os clientes se multiplicam e os planos proliferam, sem que a rede hospitalar acompanhe essa progressão. O associado só descobre o caminho do purgatório na hora em que necessita de resposta do plano: laboratórios e hospitais repletos, filas demoradas, médicos escassos, atendentes extenuados.
Em geral, o pessoal de serviço, que faz contato imediato com os beneficiários, não demonstra a menor disposição para o melhor analgésico à primeira dor: gentileza, atenção, informação sem dissimulação ou meias palavras.
Ora, se faltam postos de saúde e hospitais, se consultórios têm salas de espera repletas como estação rodoviária em véspera de feriado, se na hora da precisão se descobre que o plano é bem mais curvo e acidentado do que se supunha… a quem recorrer? Entregar-se às mãos de Deus?
O Brasil é o país dos paradoxos. O que o governo faz com uma mão, desfaz com a outra. O SUS banca 11 milhões de internações por ano. Muitas poderiam ser evitadas se o governo tivesse uma política de prevenção eficiente e, por exemplo, regulamentasse, como já faz com bebidas alcoólicas e cigarro, a publicidade de alimentos nocivos à saúde. A obesidade compromete a saúde de 48% da população.
Entre nossas crianças, 45% estão com sobrepeso, quando o índice de normalidade é não ultrapassar 2,3%. De cada cinco crianças obesas, quatro continuarão assim quando adultos. No entanto, as leis asseguram imunidade e impunidade a uma infinidade de guloseimas e bebidas, muitas anunciadas ao público infantil na TV e em outros veículos. Haja excesso de açúcares e gordura saturada!
A boa-fé nutricional insiste na importância de verduras e legumes. Mas a Anvisa (vigilância sanitária) não se empenha para livrar o Brasil do vergonhoso título de campeão mundial no uso de agrotóxicos. Substâncias químicas proibidas em outros países são encontradas em produtos vendidos no Brasil. Haja câncer, má-formação fetal, hidroencefalia, etc.!
Entre 2002 e 2008, os acidentes de moto se multiplicaram 7,5 vezes no Brasil. Na capital paulista, são quatro mortes por dia. Muitos motoqueiros sobrevivem com graves lesões. No entanto, a fiscalização de veículos e condutores é precária e as vias públicas não são adaptadas ao tráfego de veículos de duas rodas.
Quem chega ao Brasil do exterior, deve preencher e assinar um documento da Receita Federal declarando se traz ou não medicamentos. Em caso positivo, o produto e o passageiro são encaminhados à Anvisa. Ora, toneladas de veneno entram diariamente por nossos portos e aeroportos, e são vendidas em qualquer esquina: anabolizantes, energizantes, enquanto a TV veicula publicidade de refrigerantes com alto teor de cafeína e poder de corrosão óssea.
Embora todos saibam que saúde, alimentação e educação são prioritárias, o Ministério da Saúde dispõe de poucos recursos, apenas 3,6% do PIB, o que equivale, neste ano de 2011, a R$ 77 bilhões. Detalhe: em 1995, o governo FHC destinou, à saúde, R$ 91,6 bilhões. A Argentina, cuja população é cinco vezes inferior à do Brasil, destina anualmente duas vezes mais recursos que o nosso país.
Nossa saúde é prejudicada também pelo excesso de burocracia das agências reguladoras, a corrupção que grassa nos tentáculos do poder público (vide o prontuário da Funasa na sua relação com a saúde indígena), a falta de coordenação entre a União, os Estados e os Municípios. Acrescem-se a mercantilização da medicina, a carência de médicos e sua má distribuição pelo país (o Rio tem quatro médicos por cada mil habitantes: o Maranhão, 0,6).
Governo é que nem feijão, só funciona na panela de pressão. Se a sociedade civil não exigir melhorias na saúde, no atendimento do SUS, no controle dos planos privados e dos medicamentos (pelos quais se pagam preços abusivos), estaremos fadados a ser uma nação, não de cidadãos, e sim de pacientes – no duplo sentido do termo. E condenados à morte precoce por descaso do Estado.
* Frei Betto é escritor, autor de Calendário do Poder (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org – twitter:@freibetto.
** Publicado orignalmente no site Adital.