O pior não é pegar um voo transcontinental, tendo que ouvir horas um grupo de classe média alta paulistana arrotando preconceito, transpirando intolerância e exibindo o seu poder de compra a torto e a direito no raio de alcance do seu ouvido. O pior é estar sentado na janelinha e, portanto, preso por todos os lados, em uma tortura semelhante ao tratamento Ludovico, a que foi submetido Malcolm McDowell, em A Laranja Mecânica. Com a diferença que o resultado é o inverso e eu – que tenho pavor de avião – só torço para a aeronave cair e acabar com isso tudo. O sangue sobe, a paciência esgota, o sono não vem, o serviço de filmes deu chabu e nem um Frontal à mão para apagar de vez. E nada deles pararem, no melhor estilo “sou brasileiro, não desisto nunca”. Ah, o horror, o horror! Dá até tempo de refletir que, graças a Buda, esse pessoal não está falando em inglês. Caso contrário, teria também que suportar as dores da vergonha alheia que – como todos sabem – afeta mais quem está assistindo do que quem está provocando a comoção. Essa reflexão puxa outra: será que a classe média que está ganhando o mundo com o desenvolvimento econômico brasileiro tem esse perfil ou esse grupo é só a distorção da curva normal, vulgo uma extravagância? Se tiver, em pouco tempo vão deixar de se referir a nós de forma simpática como o país do samba e do futebol (o que, a propósito, seria ótimo – esse estereótipo é um porre) para nos chamar de povo da arrogância – junto com o grande irmão do Norte. Uma amiga que trabalha em uma embaixada do Brasil no exterior disse para ir me acostumando, pois esse perfil “o-Brasil-domina-o-mundo-agora-sou-rico-posso-comprar-tudo-inclusive-você” tem sido a maioria dos que aparecem. Gente que bate na porta da representação diplomática e diz que quer dar um rolê e conhecer os escritórios e quando lhe é explicado que há horário próprio de visita, pois aquilo é uma repartição pública, roda a baiana gritando “eu pago meus impostos, eu vou entrar”. Semelhante a quando eu era mesário e os filhos das eleitoras chiques brincavam com as urnas eletrônicas achando que aquilo era PlayStation e, se alertássemos que não era videogame, elas bradavam que pagavam impostos. Bem, a dúvida que fica é se alguém, que espera para revelar o que há de pior na natureza humana em uma caixa de metal a mais de dez quilômetros de altura, deixou o superego em casa quando saiu para viajar, está tentando alimentar um processo de autoafirmação bisonho, sofre de falta de oxigênio ou quer realmente compartilhar com o mundo uma visão que faria corar skinheads. Se pelo menos estivesse com a minha camiseta do Seu Madruga vestido de Che Guevara, dava para causar uma polêmica. Mas não, nem isso. Tolerância com os intolerantes é dose. O que dá para fazer? Levantar e lascar um sermão? Putz, não ia dar certo… Ouviria um “xiiiiiiiii” coletivo, o que daria razão para o outro lado. Ia ser bonito para contar aos leitores do blog, mas certamente levaria um pacote de “massa, carne ou frango” na cara. Afinal de contas, o brasileiro é um povo cordial, do deixa disso, do para com isso, do vamos beber para esquecer. Pobres comissários de bordo que não ganham o suficiente para aguentar esse pacote todos os dias… Desculpem este fluxo de pensamento contínuo. Esses momentos claustrofobicamente tristes produzem isso, o que é bom para ajudar a fugir…
(Suspiro.)
Moral da história: Em voos longos, leve um radinho.
* Publicado originalmente no Blog do Sakamoto.